As 49 páginas da Covid-19 que a ministra não leu
A ministra da Segurança Social foi humilhada pelo Presidente da República porque não leu um relatório de 49 páginas sobre o surto de Covid-19 num lar de Reguengos de Monsaraz que matou 18 pessoas.
Podemos ser condescendentes e dizer que a ministra Ana Mendes Godinho fez a carreira quase toda na área do turismo e que não domina os temas da Segurança Social.
Ou podemos ser mais exigentes e dizer que a ministra Ana Mendes Godinho fez a carreira quase toda na área do turismo e que não domina os temas da Segurança Social!
Independentemente do ponto ou do ponto de exclamação, e do tom mais ou menos simpático e tolerante que queiramos dar à frase anterior, nesta altura já é mais ou menos evidente para todos que a ministra tem dificuldades nos temas mais técnicos da área da Segurança Social, e isso reflete-se nas sucessivas trapalhadas do seu ministério.
Dir-me-ão que uma ministra não precisa de ser técnica, basta ser política. Creio que este fim de semana também ficou evidente que, politicamente, Ana Mendes Godinho deixa muito a desejar. Dar uma entrevista ao Expresso, e admitir que não leu o relatório que lhe foi enviado pela Ordem dos Médicos sobre o surto de Covid-19 num lar de Reguengos de Monsaraz que matou 18 pessoas, é, como defende o bastonário, “no mínimo, estranho e de uma enorme insensibilidade”.
Miguel Guimarães explicou que as conclusões do inquérito foram enviadas à Segurança Social na mesma altura em que o documento seguiu para o Ministério Público, ou seja, Ana Mendes Godinho teve pelo menos uma semana para ler (ou mandar alguém ler por ela) um relatório que, como lembrou Marcelo Rebelo de Sousa, tem apenas 49 páginas.
Se Ana Mandes Godinho não teve tempo de o ler, Marcelo Rebelo de Sousa teve: “Eu li. Li vários relatórios. É preciso ver que é preciso lê-los todos”, atirou o Presidente da República em jeito de recado para a ministra da Segurança Social que fica politicamente bastante fragilizada.
Fragilizada fora e dentro do próprio Governo, porque, na entrevista ao Expresso, Ana Mendes Godinho tenta sacudir água do capote quando confrontada com as conclusões do relatório de Reguengos que não leu: “Essa é uma valência da Saúde. E sobre as condições de saúde das pessoas não falo, nem tenho conhecimentos para isso. Desconheço qualquer informação dessa natureza”, defende-se, tentando colocar o ónus em Marta Temido.
O pior é que, na resposta imediatamente seguinte aos jornalistas do Expresso, a ministra assegura que o seu ministério tem feito uma “monitorização ao dia do que vai acontecendo em todos os lares do país, em grande articulação com o setor social e com a Saúde no terreno”.
Tenta sacudir água do capote e depois mete água logo a seguir. Se está em “grande articulação” com a Saúde, como é possível não conhecer as conclusões do relatório? E, não o conhecendo, como saberá que respostas deve dar para debelar o problema? A ministra diz que vai contratar 15 mil pessoas para os lares, mas se tivesse lido o relatório perceberia que o problema, pelo menos em Monsaraz, não foi falta de pessoas: foi de não cumprimento de regras básicas como separar doentes Covid e não-Covid, foi não ter planos de contingência, foi a falta de um quadro de médicos e enfermeiros obrigatório e, finalmente, foi ausência de fiscalização que deveria ter sido feita pelos serviços da Segurança Social.
Como se não fosse suficiente a falta de preparação no tema de Reguengos de Monsaraz, Ana Mendes Godinho tenta, de uma forma politicamente pouco habilidosa e com uma sensibilidade social duvidosa, relativizar a situação da pandemia nos lares ao considerar que “a dimensão dos surtos não é demasiado grande em termos de proporção”. Tendo em conta que 40% das mortes por Covid em Portugal ocorreram em lares, a frase é de uma insensibilidade atroz.
Mas o problema de Ana Mendes Godinho não é tanto o que diz e não deveria ter dito, nem sequer o que não leu e deveria ter lido. O problema principal da ministra é que também tem dificuldades com a escrita. As leis, os decretos, os regulamentos e as adendas que têm saído da Segurança Social mostram um ministério desnorteado, descoordenado, sem liderança, sem rei nem roque. Basta ver alguns exemplos.
1. Ninguém sabe como calcular os salários no “novo lay-off”
Tal como o ECO noticiou na semana passada, está instalada a confusão em torno do cálculo dos salários no apoio à retoma progressiva. O decreto-lei que fixou as regras deste novo regime determina que os vencimentos relativos ao período de trabalho mantido devem ser apurados com base na retribuição horária, mas a Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), um organismo tutelado pelo ministério, discorda e defende que deve ser assegurado ao trabalhador o valor diretamente proporcional à percentagem do horário mantido. Estas duas interpretações sobre a mesma lei são relevantes, já que significam mais ou menos euros no final do mês para os trabalhadores que estão neste novo regime que veio substituir o lay-off simplificado. O ministério nem sequer se dá ao trabalho de dar uma explicação às empresas.
2. Quatro decretos e portarias para tentar acertar no lay-off simplificado
Quando, no início da crise, o Governo avançou com um pacote de medidas anticrise, foram precisos quatro decretos e portarias para tentar chegar a um texto que fizesse um mínimo de sentido para os empresários. As empresas nem sequer percebiam se a parte dos 70% de salário que era financiada pela Segurança Social deveria ou não ser sujeita a retenção de IRS. Já para não falar do facto de o ministério se ter comprometido — e ter falhado — no prazo para fazer chegar dinheiro aos empresários, levando o ministro Siza Vieira, numa atitude de humildade, a reconhecer que as expectativas dos empresários tinham sido defraudadas.
3. IBAN, falhas informáticas e outras trapalhadas
Paula Franco, a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, foi a primeira a pedir a cabeça da ministra, já que “a Segurança Social não tem estado à altura das necessidades dos seus contribuintes”. Os contabilistas relataram sucessivas falhas no sistema informático, casos de empresas que requereram lay-off e viram o processo rejeitado pela Segurança Social apesar de terem todos os elementos completos e sem erros, e pedidos redundantes de IBAN às empresas que, afinal, já estavam na posse da Segurança Social.
4. Diabéticos e hipertensos com apoio… sem apoio
Este é outro exemplo da forma leviana como Segurança Social tem atuado. O decreto-lei 20/2020 permitia às pessoas que pertencem a grupos de risco poderem pedir um atestado médico e faltar ao trabalho. Este decreto-lei foi publicado numa sexta-feira e incluía diabéticos e hipertensos. Na segunda-feira seguinte foi republicado, e dele desapareceram os diabéticos e os hipertensos. Assim, de chofre, sem nenhuma justificação. Foi preciso recorrer aos deputados para corrigirem essa aberração do ministério.
5. O Governo diz uma coisa, a DGERT diz outra
É mais um exemplo do desnorte do ministério de Ana Mendes Godinho. No início de junho, o Governo tinha escrito no Programa de Estabilização Económica e Social que o apoio à retoma progressiva teria como destinatários apenas as “empresas que tenham beneficiado do regime de lay-off simplificado”. A DGERT vem agora dizer que não, que afinal todas as empresas podem ter acesso desde que as vendas tenham caído mais de 40%.
6. Até a Provedora da Justiça já perdeu a paciência
A denúncia feita foi feita pela Provedoria de Justiça que veio revelar que a Segurança Social estará a exigir aos trabalhadores independentes o cumprimento de um requisito que não está previsto na lei para ter acesso à ajuda do Estado. A Segurança Social está a exigir que os trabalhadores independentes tenham descontado no mês anterior ao mês da quebra de atividade, mas a lei apenas refere que basta aos trabalhadores terem tido “uma obrigação contributiva em pelo menos três meses seguidos ou seis meses interpolados há pelo menos 12 meses”.
7. Excluídos do complemento de estabilização
Por razões burocráticas, a Segurança Social está a negar a alguns trabalhadores o acesso ao complemento de estabilização — uma prestação social a que teriam direito por terem estado no regime de lay-off –, porque mudaram de empregador pouco antes de entrarem nesse regime ou então porque tiveram o azar de ter estado de baixa médica durante todo o mês de fevereiro.
8. O subsídio de refeição em teletrabalho
Durante semanas, os empresários ficaram às escuras sobre se teriam de pagar ou não o subsídio de refeição aos trabalhadores que estavam em teletrabalho. Passadas várias semanas, o Governo decidiu impor o pagamento obrigatório, não através de uma lei ou de uma clarificação à lei, que é omissa e confusa, mas através de esclarecimentos informais publicados pela DGERT
9. Empresas às escuras sobre TSU do subsídio de férias
É mais um exemplo recente das trabalhadas. Em pleno período de férias, nem a Ordem dos Contabilistas, nem os advogados e nem a Confederação do Comércio sabiam se no regime do lay-off simplificado, o subsídio de férias estaria ou não isento de taxa social única (23,75%). Na conferência de imprensa onde tentou explicar esta questão aos jornalistas, Ana Mendes Godinho teve de ser interrompida pelo secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, tal era a incapacidade e o desconhecimento que revelou para poder esclarecer a questão.
São 9 exemplos que mostram que não ler um relatório de 49 páginas sobre a Covid-19 em Reguengos é o menor dos problemas da ministra da Segurança Social. Se o exercício de governação fosse uma prova dos nove, a ministra claramente que chumbava. Ana Mendes Godinho está em funções há 9 meses, mas governa como se estivesse no cargo há 9 dias. E não vamos dar mais exemplos de trapalhadas porque rapidamente esta crónica iria chegar às 49 páginas e a ministra provavelmente não a iria ler.
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