Montepio: é uma Santa Casa portuguesa, com certeza
Santa Casa tem 200 milhões para investir e não vai entregá-los ao Montepio, o mercado imobiliário para arrendamento parece uma óptima oportunidade. Procura é muita, faltam casas e preços dispararam.
Nunca fiando, parece que o Parlamento matou a tentativa de entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no capital do banco Montepio Geral.
A aprovação pelos deputados de vários projectos de resolução, da esquerda à direita, recomendando que aquele operação seja travada terá dado, pelo menos, o pretexto ideal para congelar o negócio. No Parlamento, só o PS esteve desalinhado, defendendo o negócio. Lá terá as suas razões.
Ainda que tudo venha mesmo a ficar por aqui, a forma como se foi desenvolvendo esta promessa de negócio mostra como não podemos dormir descansados. A assalto a dinheiros públicos ou de utilidade pública é uma ameaça permanente promovida, muitas vezes, por aqueles que deviam ter como primeira função defendê-lo.
De todo este caso, sobram os defeitos do costume que tardamos em corrigir.
O primeiro é a absoluta falta de transparência. Nunca se percebeu quem defendeu o quê ou quem decidiu o quê, tanto do lado do potencial comprador como do potencial vendedor. Recorde-se que estamos a falar de duas entidades de interesse público, supostamente da área da economia social e tuteladas directamente pelo Governo.
Desconhece-se quem foi mandatado e por quem para negociar o que quer que seja. Quem aprovou esses mandatos do lado da SCML e da Associação Mutualista do Montepio Geral, que é a dona do banco Montepio Geral e, por isso, o verdadeiro vendedor? Qual o envolvimento dos cerca de 600 mil associados? Nada disto foi alguma vez esclarecido, a começar pela intervenção directa do Governo. Sinal de que ninguém queria comprometer-se, o que só nos pode deixar incomodados com as reais motivações e potencial de asneira do negócio.
Depois, temos o amadorismo e improviso com que tudo decorreu. Primeiro eram 200 milhões de 10% do capital do banco Montepio Geral, porque isso é que fazia sentido. Mas depois já eram apenas 20 milhões por 1%, porque há que ser prudente – mas então antes não estavam a ser prudentes? É que sempre nos garantiram que sim. Tudo a apontar para uma avaliação do banco na ordem dos 2.000 milhões que nunca ninguém conseguiu explicar. Foi até confrangedor assistir a tentativas públicas de explicar o inexplicável. Não há estudos públicos que sustentem os valores envolvidos, há apenas indicações a partir dos relatórios e contas que, como sabemos por experiência passada, valem o que valem.
Mas fica já uma sugestão: se Santa Casa tem 200 milhões para investir e não os vai entregar ao Montepio, o mercado imobiliário para arrendamento parece uma óptima oportunidade. Não faltam vozes a dizer que a procura é muita, faltam casas para arrendar e os preços dispararam. Podem até praticar rendas mais baixas, cumprindo a sua missão social sem arruinar a instituição.
Por fim, a absoluta incapacidade dos responsáveis envolvidos em explicar o sentido que isto podia fazer. Ouvimos o provedor da Santa Casa explicar que era um negócio puramente financeiro. Já o Governo, sustentou que “poderá ter uma dimensão estratégica, não se tratando apenas de um investimento financeiro de curto prazo ou de um investimento de natureza meramente financeira”. E até se fez o paralelo: “da mesma forma que a SCML investiu em património imobiliário e colecções de arte”.
Vai aqui uma enorme confusão entre investimento financeiro – aquele que é feito para a obtenção de uma mais-valia que ofereça uma boa rentabilidade do capital investido, dado o nível de risco assumido – e opção estratégia – operação a mais longo prazo que tem vantagens e um envolvimento que não se resumem à mais-valia financeira que possa vir a obter-se no negócio.
Se quisermos um paralelo fácil, o investimento financeiro é um namoro de Verão e o investimento estratégico é um casamento com filhos. Tudo é legítimo, tudo pode fazer sentido, ambos têm as suas vantagens e os seus riscos. Mas acharmos que é tudo a mesma coisa e comportarmo-nos enquanto tal só pode acabar mal.
Por fim, os alegados propósitos estratégicos que por vezes eram invocados mas nunca devidamente explicados. O que é isso de ter um “banco para a economia social”? E como se concretiza isso na articulação com todas as outras entidades do chamado sector social – as Santas Casas e afins? Que regras de governação e de gestão deve ter uma entidade financeira com essas características?
Pretender que por se tratar do sector social as regras da aritmética, da boa gestão bancária e da avaliação de risco não se lhe aplicam é uma corrida acelerada para o desastre. Um banco é sempre um banco e não adianta desafiar a lei da gravidade quando se trata de avaliação e financiamento de investimentos, sejam eles comerciais ou sociais. No final, ou há dinheiro para pagar o empréstimo ou não há. E se o banco não o receber, isso faltará nas suas contas e terá que ser reposto. Se esse capital vem de uma associação mutualista de 600 mil cidadãos, de um banco estrangeiro com sede em Pequim ou Luanda ou uma Santa Casa qualquer, é indiferente para o equilíbrio das contas do “banco social”, desde que o dinheiro apareça. Porque se o dinheiro não aparecer vamos perceber que um banco social falido não é em nada diferente de um banco comercial falido.
Mas dando de barato que até pode fazer algum sentido alinhar um conjunto de accionistas com fontes de financiamento, intenções estratégicas e expectativas diferentes dos accionistas tradicionais da banca, o certo é que nada disto foi estudado, desenhado e estruturado nesta tentativa de negócio da Santa Casa com o Montepio.
Não houve um plano estratégico sólido publicado, as contas foram “de merceeiro” e os protagonistas tudo fizeram para baralhar e confundir intenções e números em vez de esclarecer.
O espírito foi este: há um banco a precisar de capital? Chama-se a Santa Casa e está resolvido. Ainda por cima a tutela política é a mesma, tudo se decide nos mesmos gabinetes.
O grande problema é que o dono desse banco é uma associação mutualista com graves problemas de transparência e de governação, liderada pela mesma pessoa há uma década, arguida em processos financeiros, com práticas pouco mutualistas e que tudo vai fazer para se manter no lugar.
O Grupo Montepio precisa de ser salvo? Sem dúvida. Mas antes de mais nada precisa de ser salvo de Tomás Correia, da sua gestão e da sua teia de interesses. A tibieza dos reguladores em questões como esta não costuma acabar bem.
(O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.)
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