Orçamento e Cativações
O “logro” orçamental.
Eu avisei, juro que avisei. Nas páginas (eletrónicas entenda-se) deste jornal, em que semanalmente o António Costa (o publisher do ECO, entenda-se também) vai com paciência de Jó, publicando estas minhas crónicas, que desde há quase um ano que ando a alertar que o “sucesso” orçamental de 2016 é aquilo que esta semana o país político descobriu (com muitos meses de atraso já se vê): que parte do “sucesso” orçamental de 2016 decorria de uma forte contração nos gastos com os serviços públicos via as agora famosas “cativações”. Digo com muitos meses de atraso porque desde meados de 2016 que era visível uma mudança radical na gestão orçamental do governo.
Quem agora vem, muito ofendido, rasgar as vestes e dizer que “não foi executado o Orçamento que aprovámos na Assembleia”, ou anda muito distraído (e devia ter lido algumas coisas que foram sendo escritas neste ultimo ano) ou anda a gozar com a malta.
Deviam ter lido um artigo meu de março, que o ECO na quarta-feira simpaticamente recuperou, sobre o “milagre orçamental”. Aliás, eu próprio já havia usado o termo “milagre” para explicar o défice de 2016, em 27 de dezembro, seguramente imbuído de espírito Natalício (“As contas de 2016 e o “milagre orçamental”). E ainda na ressaca do Natal, expliquei a “prenda” que o perdão fiscal tinha sido para o défice de 2016 (O “PERES” Natal e os números de 2016).
Mas antes disso já tinha alertado que a consolidação orçamental era baseada em redução de investimento e cativações, bem como medidas “one-off” como o perdão fiscal, a garantia dos empréstimos Europeus e a venda de F-16 (ver por exemplo aqui e aqui).
Depois não digam que não os avisei.
Mas agora repare-se: aprovaram dois orçamentos, mas também dois Programas de Estabilidade. Nos quatro documentos há uma aposta clara em cumprir as regras orçamentais Europeias (exceto o saldo estrutural, porque grande parte das medidas é aproveitar o crescimento económico e medidas “one-off”). Nos quatro documentos é claro como água (para quem saiba ler isto com um mínimo de rigor) que o pouco de consolidação orçamental estrutural seria aumentando impostos indiretos e cortando despesa dos serviços e investimento público.
Posto isto tudo, a minha conclusão em abril deste ano, após a aprovação do 2º programa de estabilidade, era que a “geringonça estava rendida aos conservadores orçamentais”. Que a extrema-esquerda tinha aderido aos princípios das Finanças Públicas equilibradas e do rigor das contas.
Se não foi assim, então das duas uma: ou foram enganados ou andam a fazer um exercício de dissimulação. Se foram enganados, espero que este humilde escriba e Professor de Finanças possa ter contribuído para que o logro se revele. Se não foram enganados e participaram na farsa de livre vontade, aí já não lhes posso valer.
A execução orçamental de 2016
O OE/2016 foi apresentado e aprovado entre janeiro e março de 2016 e escrevi na altura que se o OE fosse integralmente cumprido o défice ficara acima dos 3% (com um cenário central de 3.5%).
No decorrer da execução orçamental o Ministério das Finanças, deparando-se com a baixa taxa de execução da receita fiscal, começou por executar duas medidas de controlo da despesa:
- Um corte no investimento público. O investimento público tinha sido em 2015 de 2,3% do PIB e que estava orçamentado para 2016 que mantivesse esse valor. O executado foi de 1,7%, ou seja, menos 0,5 % do PIB.
- Um aumento das cativações, que atingiram quase mil M€, o dobro de 2015, permitindo que a despesa orçamentada fosse reduzida em 0,5% do PIB
Como os números de agosto/setembro mostravam ainda uma grande incerteza no cumprimento do objetivo orçamental (que era então de 2,5%), o governo lançou ainda mão de uma medida pontual, o perdão fiscal, que somada às outras medidas pontuais, valem mais 0,5%.
Tudo somado, o défice, se o OE/2016 tivesse sido executado como estava no papel, teria sido de 3,5%, o valor central da minha previsão de março de 2016.
Louve-se no entanto, e já o tenho feito, que o Ministro Centeno teve a capacidade para inverter a sua política económica e orçamental. Do plano inicial não resta praticamente nada. Foi preciso cortar para ser possível repor os cortes salariais na AP e as outras promessas eleitorais. Afinal não havia “varinha de condão” que permitia repor tudo e manter os serviços públicos, bem como ter crescimento acima dos 3%. Mas é sempre bom quando alguém reconhece o erro e o corrige. No final, o mais importante é o objetivo, embora o caminho seguido tenha sido errado.
Mas afinal o que são as cativações?
Recorde-se que o OE estabelece um teto máximo do lado da despesa (só se pode realizar despesa que esteja inscrita no Orçamento e até ao montante nele fixado). As cativações permitem ao Ministro das Finanças reduzir a verba disponível a cada serviço. Dito de outra forma, é uma retenção de verbas do Orçamento de despesa determinado na Lei do Orçamento do Estado, no Decreto-Lei de Execução Orçamental ou outro ato legal específico, que se traduz numa redução da dotação utilizável pelos serviços e organismos.
A libertação destes montantes – descativação – é sujeita à autorização do Ministro das Finanças, que decide em função da evolução da execução orçamental e das necessidades de financiamento. A utilização de cativos indica que a despesa a que o serviço está autorizado foi reduzida, passando a designar-se por dotação corrigida: recursos disponíveis para utilização pelos serviços, correspondentes à dotação orçamental inicial, abatida de cativos e corrigida com as alterações orçamentais (reforços e/ou anulações) que entretanto tenham ocorrido.
Foi dito, e de facto é assim, que mil M€ de cativos numa despesa primária (sem juros) de 77 mil M€ é pouco mais de 1% dessa despesa (é 1,3%). Sucede que os cativos são sobre a aquisição de bens e serviços e o investimento, pelo que os mil M€ foram sobre uma despesa em torno de 15 mil M€, o que dá um valor de cerca de 7%.
Mas são as cativações cortes de despesa? Depende do que entendemos como cortes. Face ao que está previsto no OE daquele ano, uma cativação que se mantenha até ao final desse ano é indiscutivelmente um corte de despesa. Digo corte no sentido em que se o Orçamento permite gastar 100 e as Finanças só autorizam 80, há claro um corte de 20. Mas isso não quer dizer que os 80, face ao que foi gasto no ano anterior, sejam um corte. Comparando com o ano anterior, os 80 podem significar mais ou menos despesa executada.
Ora, pode-se argumentar que no curto prazo este é dos poucos instrumentos que o Ministro das Finanças tem para controlar a execução orçamental. Mas temos de mudar esse paradigma que vêm de há décadas e está caduco. Temos de ter uma gestão mais flexível, com um acompanhamento em tempo real e que responsabilize cada executor público pela sua gestão. Precisamos também de “expenditure reviews” que aumentem a qualidade da despesa, de um maior controlo por parte quer das inspeções, quer do Tribunal de Contas e de maior “accountability”.
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