Mesmo ao lado da base aérea do Montijo, os habitantes do Samouco pouco têm a apontar de negativo à construção do próximo aeroporto. O ruído e os turistas são o que mais os preocupa.
Por volta das 15h, a Praça da República, na freguesia do Samouco, está movimentada. Neste dia frio, o sol ajudava, é certo, mas os motivos eram outros. Metros abaixo, na Rua das Salinas, estavam a acontecer protestos contra a transformação da Base Aérea n.º 6 do Montijo num aeroporto, isto no dia em que o Governo e a ANA assinaram um memorando de entendimento para dar o tiro de partida à solução Portela+1. O intensificar do barulho dos aviões e o aumento de turistas são dois pontos que preocupam os habitantes mas, fora isso, mostram-se indiferentes a este investimento.
“A mim não me faz diferença vir para aqui, ouço os aviões todos os dias a passar, por isso já nem estranho. Não me afeta nada”, começa por dizer Fernanda Carveiro, de 66 anos. “Já vejo tudo tão caro: as casas que custam um balúrdio, a comida que está cada vez mais cara… Anda tudo caríssimo”. De pé na Praça da República, na zona dos autocarros — que, para uma vila pequena como o Samouco, tem bastantes passageiros –, espera pela filha que não tarda a chegar num autocarro com partida de Lisboa. Para Fernanda, a conversão da base aérea num aeroporto civil só tem uma coisa boa: “Só estou feliz porque a minha filha está em França e quando ela vem cá sempre fica um bocadinho mais perto. Assim o pai pode lá ir buscá-la. É diferente”, diz, ao ECO.
Nas ruas do Samouco — chamada pelos habitantes de “dormitório” devido à falta de movimento durante a noite –, são vários os que, assim como Fernanda, não estão preocupados. Mas, para os que estão, o problema é que as pessoas “têm medo que custo de vida aumente, porque vai ser tudo mais caro”, explica. “As pessoas criticam, dizem que vai ser uma desgraça, mas não acredito”, atira. Isto porque caras já estão as coisas, defende Fernanda Carveiro. “Estou como outro: a mim não me afeta nada o aeroporto vir para aqui. Já moro aqui no Samouco há mais de 40 anos, tenho ouvido sempre aviões a passar. Uns mais altos, outros mais baixos, mas ouço sempre”, diz. O seu desejo é só um: “É bom que venha para aqui o que for melhor para nós”.
"No outro dia passou um [avião], era um barulho tão grande que até fui espreitar à rua. Parecia que me ia derrubar o quintal. Já estávamos habituados, mas agora é que vai ser.”
O mesmo diz Maria Rosa, sentada num dos muitos bancos que a Praça da República oferece. Tem dificuldade em estar de pé sem o seu andarilho de três rodas. “Para muitos, é bom isto vir para aqui, mas para outros não, por causa do barulho dos aviões aqui ao pé das casas”, diz. No Samouco os habitantes estão habituados a ouvir algum barulho, mas quando aumentar vai ser mais complicado. “No outro dia passou um [avião], era um barulho tão grande que até fui espreitar à rua. Parecia que me ia derrubar o quintal. Já estávamos habituados, mas agora é que vai ser”. Contudo, para a viúva de 78 anos, pouco ou nada há a fazer. “A gente não manda aqui, eles [o Governo] pensam no que querem fazer, dizem que fazem e fazem mesmo. Não é por dizermos que não queremos que eles não fazem”.
Barulho à parte, para Maria Rosa este investimento “não faz diferença”. “Não tenho ideias de ir para o aeroporto. Nunca me meti dentro de um avião, não vai ser agora. Deus me livre, eu morria logo à entrada!”, afirma, entre risos. Ainda assim, mostra-se preocupada com uma coisa: os turistas. “Depois vem para aqui muita malta que não queremos. Estamos aqui no sossego. Vai ser sempre um problema. Mas não sei”, desabafa, acrescentado que, atualmente, há poucos turistas e que desses já sentem algum medo.
O sol vai-se pondo, mas um grupo de cerca de dez amigos seniores deixa-se estar na cavaqueira na praça. Não dizem os nomes e mostram-se tímidos em falar, embora sem perder a animação. “Não quero cá o aeroporto. Barulho demais já cá temos”, atira um. “Temos de experimentar primeiro”, diz outro. “É bom para aqui, é bom que venha. Vinha dar um grande desenvolvimento à terra”, opina um terceiro. Para estes reformados, o ruído que se ouve no Samouco continua a ser um dos principais problemas. E nem o argumento dos transportes é suficiente para mudar opiniões. “Transportes já há muitos” e os autocarros, que passam de dez em dez minutos, vêm praticamente vazios, “porque não há passageiros suficientes”, explicam.
Para alguns elementos do grupo, os turistas também são um problema, tal como apontou Maria Rosa. “O que mais há aqui é turismo. Só da Tailândia são mais de 100, na apanha da amêijoa. E romenos. Daqui a pouco já ninguém fala português aqui”, dizem. “Isso é ilegal, mas o Estado fecha os olhos” às pessoas que se aventuram todos os dias na zona da praia, de mochila às costas, a apanhar este molusco. “Parecem garimpeiros”. Para aqueles que têm opinião contrária, o turismo pode ser uma oportunidade para o Samouco: “É bom que venha. Se der uma volta aqui nas mercearias, está tudo vazio”.
"É uma grande falha no Montijo. Temos mesmo pouca coisa em termos de transporte e havendo o aeroporto pode ser que isso mude.”
Mas enquanto os mais velhos defendem que os transportes que existem no Montijo são suficientes, os mais jovens pedem uma maior oferta. “É uma grande falha no Montijo”, quem o diz é Pedro Gomes, proprietário do Paraíso dos Animais, uma loja mais afastada do centro. “A malta nova, se for para Lisboa à noite, quando quer voltar para o Montijo, ou apanha o último autocarro no Oriente por volta das 00h ou 1h da manhã, ou então o barco no Cais do Sodré por volta das 23h”, explica. Uma corrida de táxi de Lisboa ao Montijo fica por cerca de 40/50 euros. Por isso, considera que têm “mesmo pouca coisa em termos de transporte e havendo o aeroporto pode ser que isso mude”. Contudo, admite que, por agora, não se justificam mais transportes, “porque o Montijo não deixa de ser um dormitório”.
“Sinceramente, as pessoas estão a fazer um grande filme à volta de algo que não temos como parar. Todas estas manifestações — mesmo aqui na loja recebemos os panfletos –, isto é algo que já está tratado há muitos anos. Não há nada a fazer”, afirma. “As pessoas estão a depositar muitas esperanças nisto. Acho que vai ser só uma rota de passagem, mais nada. Não estou a ver as pessoas a chegarem cá e a ficarem”, continua.
“Esta malta das imobiliárias não parou”
Tal como contam os habitantes do Samouco, o mercado imobiliário também se agitou, à semelhança de Lisboa. De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o preço das casas nos concelhos do Montijo e de Alcochete aumentou mais de 30% ao longo dos últimos dois anos, um ritmo de crescimento que representa o dobro do que foi registado, em média, no resto do país. “As casas que estavam abandonadas já estão a ser vendidas. Estas casas que estão aí e que estão a ser todas compradas, é tudo por causa do aeroporto”, confidencia Fernanda Carveiro.
“Quando houve aí um ecozinho de que vinha para aqui o aeroporto, há cerca de um ano, esta malta das imobiliárias não parou. As caixas de correio estavam sempre cheias de material a perguntar se queríamos vender a nossa casa ou se sabíamos de alguém que quisesse”, corroborou um dos amigos na praça.
"Há por aqui muita casa, mas com essa coisa do aeroporto, toda a gente quer ganhar mais dinheiro.”
E com isto, obviamente que os preços também aumentaram. “As casas estão cada vez mais caras. E ainda vão ficar mais. E se o aeroporto vier para aqui agora então valha-me Deus”, continua Fernanda, colocando a questão no condicional, já que ainda não existe luz verde do estudo de impacte ambiental. Quem já sentiu isso na pele foi Maria Rosa que recebeu há uns meses uma carta do senhorio a anunciar um aumento de renda. “Moro num rés-do-chão há 50 anos, pago 100 euros. Entrei para lá a pagar 100 escudos (50 cêntimos). No segundo ano fui logo aumentada para 200 escudos”, conta ao ECO, amparada no seu andarilho. “Há por aqui muita casa, mas com essa coisa do aeroporto, toda a gente quer ganhar mais dinheiro”.
Para Maria Rosa, um dos problemas é que há no Samouco “muitos chineses, ucranianos e brasileiros”. Mudam-se para a vila para a pesca da amêijoa. “Vêm para cá morar e têm cá casa. Aquilo dá dinheiro, tanto que eles apenas vivem disso”. A verdade é que, basta um pequeno passeio pelas ruas do Samouco para ver o elevado número de casa atualmente em obras. “Elas [imobiliárias] compram, deitam abaixo, constroem de novo e depois vendem”, afirma um dos amigos do grupo que está reunido na praça.
“Não somos contra o Montijo por uma questão de opinião. São factos”
Durante a tarde, o centro da vila estava mais movimentado do que é habitual, devido à manifestação que acontecia metros abaixo, na Rua das Salinas, perto da praia. Cerca de 50 manifestantes juntaram-se em protesto contra a conversão da base aérea num aeroporto civil, apontando várias dúvidas que o Governo insiste em não esclarecer e as inúmeras desvantagens que este investimento trará ao Samouco. “As pessoas que vivem próximas a estas zonas de aproximação às pistas vão ver a sua esperança média de vida diminuir”, dada o aumento da concentração de CO2 e do ruído constante dos aparelhos. “Para quê? Só para satisfazer interesses?”, questiona José Encarnação, a cara da Plataforma Cívica Aeroporto BA6-Montijo Não!. “Não somos contra o Montijo por uma questão de opinião. São factos”.
Para o manifestante, a questão das acessibilidades é “uma história um bocado mal contada”. Já o ruído também será “ensurdecedor” e, quanto a isso, José Encarnação assegura que esta será uma das batalhas da plataforma, a preparação das casas nas zonas circundantes. “A gente não papa grupos. É muito mais fácil resolver o problema de 400 pessoas, até do ponto de vista financeiro”, diz, defendendo que seria mais fácil instalar o aeroporto na zona de Alcochete do que no Montijo, onde a população é de cerca de 100 mil pessoas.
Outros dos pontos duvidosos é o número de postos de trabalho que serão criados. António Costa falou em dez mil mas, para José Encarnação, isso não faz sentido. “Queremos que o ministro venha cá explicar, perante relatórios internacionais que dizem que no caso do Montijo o emprego criado não vai além de 500 pessoas por cada milhão de passageiros, e sendo expectável que tenham aqui dez milhões de passageiros, como é que dizem que são dez mil empregos?“.
"Na carta arqueológica está lá tudo escrito: as peças que foram encontradas e os artefactos desses tempos. Estamos a falar de cinco a sete mil anos. Eles vão prolongar a pista por 90 metros e vão cair em cima da estação arqueológica.”
Além disso, há ainda a questão da estação arqueológica do tempo do Paleolítico localizada a norte da base aérea. “Na carta arqueológica está lá tudo escrito: as peças que foram encontradas e os artefactos desses tempos. Estamos a falar de cinco a sete mil anos. Eles vão prolongar a pista por 90 metros e vão cair em cima da estação arqueológica“, explica, dizendo que a plataforma já solicitou uma entrevista à ministra da Cultura mas, até à data, ainda não recebeu qualquer resposta. “Podemos pôr em causa a biodiversidade, a avifauna, a saúde das pessoas e ainda se pode destruir o património?”, questiona.
A plataforma está decidida a lutar até ao fim. Mas, sobre as opiniões que dividem o Samouco, “não vale a pena estar a fazer uma avaliação de quem é a favor e de quem é contra, porque os dados estão viciados”.
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Samouco entre o “não quero cá o aeroporto” e a esperança do “desenvolvimento da terra”
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