Não são bombeiros, mas também arriscam a vida. São sapadores profissionais na frente das chamas, tentando evitar o pior. Reportagem no dia em que se assinala um ano da tragédia de Pedrógão Grande.
Nem só com água se apaga os incêndios. Quem arrisca a vida neles já sabe a lição de cor: cada um tem a sua identidade, o seu ADN. Por isso, extinguir as chamas exige mais do que isso. É preciso conhecer os dados, adivinhar para onde o fogo vai, levantar barreiras à sua propagação e avaliar bem os riscos. Também há que fazer escolhas. Escolhas difíceis. Estar na linha da frente é quase um jogo de probabilidades com vidas em jogo. Um espetáculo sem graça. Um filme bem real.
E nem só os bombeiros combatem as chamas. Outros profissionais são chamados ao terreno. É o caso dos sapadores florestais, transportados para a frente de incêndio de helicóptero. São como a tropa de elite do combate às chamas. Deixados à sorte do destino, de ferramentas nas mãos e muita carga às costas. Dividem-se em equipas de cinco elementos, coordenadas por um chefe mais experiente. Transportam pouco mais de 20 litros de água. Vão vestidos, da cabeça aos pés, de amarelo e verde. Abrem linhas de controlo no meio do mato para tentar travar o avançar do fogo. As circunstâncias ditam a necessidade: estão sempre preparados para o pior.
É este é o trabalho dos sapadores da Afocelca, um agrupamento do setor papeleiro criado em 2002 e do qual fazem parte, atualmente, os grupos Altri e Navigator. São como uma brigada profissional e especializada cuja missão é evitar prejuízos nas propriedades florestais destes grupos. “Estamos a falar de empresas que têm um objetivo, que é a produção”, explica João Bandeirinha, supervisor do agrupamento com três décadas de experiência no terreno. “Daí a existência da Afocelca, que tem como objetivo minimizar os prejuízos resultantes dos incêndios florestais”, indica o responsável.
A lógica é simples. Uma floresta mais bem gerida é uma floresta mais protegida. “Parte significativa do dispositivo da Afocelca é constituído por elementos que trabalham todo o ano na floresta para garantir a execução das intervenções previstas nos planos de gestão florestal das empresas” que compõem o agrupamento, resume fonte oficial da Afocelca. Os resultados estão à vista. “Em média, as áreas da indústria ardem muito menos do que no resto do país. Nos últimos dez anos, até 2016, que é o último ano com dados fechados, a média de zona ardida nas áreas da indústria foi de menos de 1%”, acrescenta. Só em 2016, Altri e Navigator investiram quatro milhões de euros em prevenção. “O balanço é positivo”, refere fonte oficial do agrupamento. É um valor que está em linha com a média de investimento anual.
O principal objetivo é sempre não combater fogos dentro das florestas da Altri e da Navigator. Quando isso acontece, significa que o fogo nem sequer lá chegou. Dizem os números que, por ano, 85% dos incêndios socorridos por estes profissionais são em propriedades vizinhas. “O ideal é nunca atuarmos dentro daquilo que é o nosso património. A nossa função é tentar combater o incêndio para que não chegue ao património florestal”, conta o supervisor, explicando que nem sempre a floresta é a prioridade. No decorrer de um incêndio, quando há populações em risco, o foco passa a ser outro — ainda que essa seja, por norma, a função dos bombeiros e da Proteção Civil. “Seria desumano não o fazer”, diz o João Bandeirinha ao ECO.
O ideal é nunca atuarmos dentro daquilo que é o nosso património. A nossa função é tentar combater o incêndio para que não chegue ao património florestal.
“É como numa guerra”
O ECO acompanhou um exercício de simulação levado a cabo por equipas helitransportadas da Afocelca, em Castelo Branco, três dias antes do primeiro aniversário da tragédia de Pedrógão Grande. O alerta de incêndio é dado via rádio, pouco depois do briefing matinal aos chefes de equipa, que inclui a previsão meteorológica do dia para que “tenham a noção” das condições atmosféricas. A partir daqui, os membros têm sete minutos para se equipar, transportar o material para o helicóptero e descolar em direção ao terreno. A aeronave aterra onde pode e a primeira equipa de intervenção, Bravo 1, é deixada a pouco mais de um quilómetro das coordenadas do fogo. Depois, seguem a pé.
Cerca de dez minutos, talvez nem tanto, dá-se o primeiro encontro. O fogo apresenta-se e a equipa também. É identificada a direção de propagação das chamas — que, nesta simulação, não marcaram presença — e começam os primeiros trabalhos. O chefe dá as orientações. Um sapador segue em frente, com uma motosserra, e vai abrindo caminho. Os restantes, quase sempre em formação, vão limpando o que resta do mato. Abre-se assim o primeiro aceiro, ou linha de controlo — uma espécie de estrada com metro e meio de largura e que serve para impedir que o fogo evolua a partir dali. O calor do sol aumenta a dificuldade. Se fosse um incêndio verdadeiro, estariam a dois metros das chamas.
Transportadas todas as equipas, o helicóptero, subcontratado pela Afocelca à Helibravo Aviação, é equipado com um balde. Ali perto há uma lagoa. O piloto, Ricardo Silva, viaja até lá para recolher a primeira carga de água. Em poucos minutos, sobrevoa o aceiro já aberto pelos sapadores. É solicitado um primeiro ataque aéreo via rádio. “Descarga!”, gritam os sapadores, enquanto a aeronave faz um voo a baixa altitude, largando 820 litros de água bem em cima dos profissionais.
Mas se pensa que o helicóptero só serve para ataque direto ao fogo, saiba que não é bem assim. “O intuito do helicóptero não é apenas apagar o fogo. É conter as chamas para podermos cortar o mato”, comenta um profissional. Para os sapadores, é ainda uma ajuda do céu. Uma limpeza do ar repleto de fumo denso. Ou até mesmo um refresco.
João Bandeirinha, supervisor, acredita que é preciso ter algumas noções sobre o “comportamento do fogo” para se perceber, em pormenor, todo este procedimento. Mas arrisca uma explicação mais resumida, para os menos entendidos na matéria: “O helicóptero, quando faz uma descarga de água, mediante a circunstância de que estamos a falar, poderá ser não só para apagar o fogo, mas também arrefecer o ambiente ou conter a progressão da frente de chama, para depois, com o trabalho de sapador, abrir-se o tal aceiro que vai quebrar a continuidade de combustível. Não havendo combustível, não há progressão da chama”, frisa, lembrando que o helicóptero “tem de ser sempre complementado com o trabalho terrestre”. Tal e qual “como numa guerra”.
Portugal tem uma questão muito desfavorável, que é o desordenamento do território. A falta de cuidado dos proprietários, inclusivamente quando o proprietário é o próprio Estado.
“Não conseguimos limpar o país inteiro”
Porque é que Portugal arde tanto? Os profissionais com quem o ECO falou apontam para o desordenamento da floresta, mas também para a demografia. A população está mais envelhecida e os campos não são trabalhados como outrora. A “manta morta” acumula-se e é o rastilho que promove incêndios descontrolados que lavram sem dó nem piedade.
“Um fogo só acontece se tiver as condições reunidas que favoreçam o seu desenvolvimento. Porque o fogo pode começar, mas só se desenvolve se tiver uma série de pré-requisitos criados e que o permitam”, sublinha o piloto Ricardo Silva. Habituado a uma perspetiva aérea do teatro de operações, é-lhe mais evidente o problema de desordenamento do território que, somado ao clima mediterrânico, faz de Portugal um paraíso para os incêndios. “Temos um relevo e uma meteorologia que são propícios a isto. Aliás, qualquer país mediterrânico é muito propício a isto”, aponta o comandante.
Mas não são só as condições atmosféricas a promoverem a propagação dos incêndios, aponta o piloto. “Portugal tem uma questão muito desfavorável, a adicionar a isto, que é o desordenamento do território. A falta de cuidado dos proprietários, inclusivamente quando o proprietário é o próprio Estado. E isso é um desafio que, por um lado, torna o nosso trabalho ingrato”, refere. “Descarregamos água, balde após balde após balde, e nunca conseguimos terminar ou baixar a intensidade do fogo, de modo a que as equipas terrestres possam entrar lá. Existe muita manta morta, muitas silvas, muito mato não cuidado”, denuncia. Em certas ocasiões, só sobra a frustração. “Às tantas começa a ser frustrante para nós, porque não conseguimos fazer aquilo que estamos ali para fazer”, confessa Ricardo Silva.
Paulo Cavaleiro, chefe de uma equipa de sapadores da Afocelca, também alinha com a ideia de que é preciso gerir melhor as florestas em Portugal. “Somos um país mediterrânico. Temos temperaturas altas, temos ventos. Todos os países mediterrânicos têm estes incêndios. Porque os há? Essencialmente, é o ser humano. Não estou a dizer que o faz de propósito. São essencialmente descuidos e é uma questão muito social. É preciso começar a ensinar as crianças, desde pequenas, que não se deve meter fogo. Só daqui a 20, 30 ou 40 anos é que nos vamos livrar disto. O uso do fogo em Portugal é muito recorrente e as pessoas não têm cuidado”, acusa.
O Governo promoveu uma campanha de limpeza das florestas este ano, que até é bem vista por este profissional. “Limpar as propriedades, claro que aconselho”, atira. No entanto, recorda que não é a solução completa. “Não conseguimos limpar o país inteiro. Não há dinheiro nem a floresta é sustentável assim. Temos de tentar fazer mosaicos nas florestas, diversificar mais as espécies. Nós temos monocultura, e não é só a do sobreiro. É a do eucalipto e a do pinheiro. Temos diversificar a nossa floresta”, sugere. É um trabalho que, diz, deve ser feito pelos especialistas. “Têm de ser os técnicos, os crânios, a pensarem um bocadinho. Podemos opinar mas, ao fim e ao cabo, somos combatentes e estamos cá para minimizar os erros que eles possam cometer”, assume Paulo Cavaleiro.
“Isto é um bichinho autêntico. Mas é uma profissão como todas as outras.
“Pensei nas pessoas de Pedrógão, no que sentiram”
Dificilmente a História irá esquecer o que se passou em Pedrógão Grande na semana de 17 de junho de 2017. É um tema complexo. O fogo provocou a morte a 66 pessoas e fez mais de 250 feridos. Desalojou muita gente e carimbou na memória de todos a ideia de que uma tragédia destas não mais se poderá repetir. Dificilmente a História esquecerá também o domingo de 15 de outubro de 2017, em que pelo menos 50 pessoas perderam a vida. Mais de 500 fogos chegaram a estar ativos em Portugal nesse dia.
É também um dia que não sairá do pensamento de Paulo Cavaleiro, que soma já trinta anos de experiência em fogos. Foi neste dia que apanhou um dos maiores sustos da sua longa carreira. “Andava numa viatura todo-o-terreno a verificar um local para perceber se era seguro pôr lá camiões das equipas de combate terrestre, com capacidade para 3.000 litros de água. “Numa dessas verificações, o fogo estava a arder lentamente e eu tentei passar. Quando passei, caíram umas acácias e não consegui passar mais. Não podia recuar porque estava muito fumo. O incêndio estava do meu lado esquerdo e direito. Peguei num extintor de seis quilos, meti-o nas pernas e pensei nas pessoas de Pedrógão, no que elas sentiram. Pensei: ‘vamos lá ver se não chega a minha vez.’ Não conseguia sair da viatura, porque estava muito calor de um lado e do outro”, recorda o sapador.
Conseguiu escapar quando o fogo passou com mais rapidez, apenas derretendo um farolim do veículo. Mas ainda hoje tem dificuldade em contar estes episódios à família, à semelhança de outros sapadores com quem o ECO conversou durante a simulação. No que toca a Paulo Cavaleiro, encontra motivação tanto em formar sapadores mais novos como na própria atividade de campo. “Isto é um bichinho autêntico”, diz. Garante que “é uma profissão como todas as outras”.
Não é difícil encontrar histórias de vida como esta entre os membros das equipas de sapadores. O próprio comandante do helicóptero, Ricardo Silva, também as tem. “Tenho várias histórias que posso não partilhar”, brinca, quando questionado pelo ECO. Combateu o incêndio de Pedrógão Grande e, embora o considere trágico, garante que houve pior.
“Pedrógão foi o primeiro grande incêndio do ano passado, e foi a tragédia que foi. Penso que o que aconteceu teve todos os fatores para acontecer e uma coisa daquelas é lamentável. No entanto, não me parece, por todos os incêndios em que estive no resto do verão, que tenha sido o maior. Nem de perto o mais violento”, refere. O segundo incêndio de Mação foi o maior fogo de 2017 em que esteve a combater. “Espero que este ano não seja como o ano passado”, desabafa Ricardo Silva.
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Uma enxada, uma motosserra e 20 litros de água. É assim que a tropa de elite combate os incêndios
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