Depois do Brexit, vem um vazio? Ninguém o quer
Há mais dúvidas do que certezas. As empresas estão a aguardar, mas as associações estão preocupadas. A nível fiscal há incertezas, mas as vozes oficiais garantem que não vai haver vazio legal.
Foi anunciada uma saída dura, mas a maioria espera uma transição pacífica. Da embaixadora britânica em Portugal à secretária de Estado dos Assuntos Europeus, passando pelas principais exportadoras portuguesas para o Reino Unido, é unânime que a saída do mercado único europeu será acautelada com um acordo que minimize os impactos. Planos de contingência? Não existem, para já. A aposta é que não haverá um período de vazio.
Cumprindo o seu mandato para retirar os britânicos da União Europeia, Theresa May anunciou que não fica no mercado único. A saída implica, à primeira vista, problemas de tributação, circulação de pessoas, bens, até complicações de diplomacia. Mas isso só acontecerá se houver um buraco negro entre a saída oficial e a entrada de nova legislação e acordo comercial com a UE. E essa situação está afastada: “Esse vazio não pode existir nem para as empresas nem para os cidadãos”, garante, confiante, a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, ao ECO.
Esse vazio não pode existir nem para as empresas nem para os cidadãos.
Margarida Marques garante que se está a tentar garantir que o vazio não exista, “por isso temos insistido com o Reino Unido para haver clarificação”. “Queremos que seja uma transição clara que permita às pessoas e às empresas decidirem sobre o seu futuro”, afirma ao ECO. Em causa está não só o regime fiscal após a saída do mercado único, mas também o futuro da comunidade portuguesa no Reino Unido. “Relativamente à nossa comunidade, temos conversado com as autoridades britânicas e a mensagem é de confiança”, explica Margarida Marques.
Sabe-se, por exemplo, que Portugal já se adiantou para ficar com a Agência Europeia do Medicamento. Quanto à EBA (European Banking Authority, a autoridade bancária europeia) e a possibilidade do novo centro financeiro europeu ser em Espanha, por exemplo, a secretária de Estado tem menos certezas: “É uma questão que se poderá conversar, mas é um equilíbrio que terá de ser definido depois [do Brexit]”, admite ao ECO.
Queremos que seja uma transição clara que permita às pessoas e às empresas decidirem sobre o seu futuro.
Do lado do investimento já há movimentações. Depois de ter feito um levantamento das implicações do Brexit nas políticas setoriais, a task force do Governo português liderada por João de Vallera, ex-embaixador de Portugal no Reino Unido, está a definir estratégias para atrair investidores. O que está em causa? “O investimento que já está no Reino Unido, mas com a saída do mercado interno pode ter interesse em sair. Ou investidores que tinham a intenção de investir no Reino Unido, mas que tenham perdido esse interesse e prefiram investir noutro país. Estamos a trabalhar e já a agir“, esclarece Margarida Marques.
O que disse Theresa May?
“Aquilo que estou a propor não significa sermos membros do mercado único, mas não sair do bloco europeu totalmente”, afirmou a primeira-ministra inglesa, acrescentando que quer que o Reino Unido possa “negociar os próprios acordos comerciais”. “Saímos da União Europeia, mas não estamos a sair da Europa. Queremos continuar a comprar os vossos bens e serviços”, salientou num discurso perante diplomatas de vários países.
Ao mesmo tempo, May indicou que vão ser evitadas “situações disruptivas para as empresas”, o que poderia ter um forte impacto na economia britânica. “Queremos ser uma Grã-Bretanha global e que sejamos o melhores vizinhos dos nosso parceiros europeus, e um país que vai além das fronteiras da Europa”, garantiu, sendo revelado dias depois um piscar de olhos aos EUA. Antes Theresa May já tinha ido à Índia.
Na opinião de Margarida Marques, o discurso de May para os cidadãos passou pela “ideia de responder a uma expectativa que os britânicos tinham dada a indefinição que havia sobre esta matéria: a ideia da grande potência, do crescimento económico, da industrialização, do investimento na economia, na criação de emprego, na educação, na formação“, refere ao ECO.
"Saímos da União Europeia, mas não estamos a sair da Europa. Queremos continuar a comprar os vossos bens e serviços.”
Contudo, é preciso relembrar também outras declarações feitas pelo Governo britânico. O ministro da Economia já ameaçou que o Reino Unido pode tornar-se num paraíso. “Podemos vir a ser forçados a mudar o nosso modelo económico e nos vamos ter de mudar o nosso modelo económico para reconquistar competitividade”, referiu Philip Hammond. Ou seja, pode estar a chegar um novo paraíso fiscal na Europa.
É mesmo assim? Ao ECO, o senior advisor da EY explica que é verdade que “o Brexit cria mais graus de liberdade para o Reino Unido adaptar a política fiscal interna sem os constrangimentos das regras da União Europeia“. Isto porque, dentro da UE, os Estados-membros “são obrigados à harmonização fiscal em sede do IVA e em alguns aspetos do IRC, e a não gerar medidas fiscais que resultem numa competição desleal entre as empresas dos vários Estados”.
Contudo, uma maior competitividade fiscal poderá não ser suficiente para compensar a falta do mercado único europeu. “A saída de um país da União Europeia não é predominantemente alicerçada na maior autonomia fiscal resultante. Este é um resultado colateral de um processo, entre outras causas, de natureza institucional e social”, refere Miguel Puim.
Como vai ser o processo do Brexit?
O anúncio do Supremo Tribunal britânico de que o parlamento britânico vai ter de aprovar o início das negociações da saída do Reino Unido da União Europeia pode complicar os timings definidos. Contudo, a embaixadora britânica em Portugal está confiante de que o processo parlamentar não vai impedir que o artigo 50 seja acionado em março, tal como tinha prometido May.
“Não estamos à espera que haja um atraso por causa desse processo”, garantiu ao ECO, relembrando que em dezembro os deputados britânicos aprovaram a agenda definida para o Brexit. Kirsty Hayes explica que o Parlamento vai ter um papel “mais tarde no processo em termos de decidir sobre a forma de novo acordo com a União Europeia”.
As instituições da União Europeia estão a aguardar a chamada do artigo 50. Assim que isso aconteça deverá ser convocado um Conselho Europeu “nas três ou quatro semanas imediatamente a seguir”, explica Margarida Marques ao ECO. Esse encontro dos chefes de Estado da UE servirá para estabelecer as orientações para a negociação, que será liderada pelo francês Michel Barnier.
Não estamos à espera que haja um atraso por causa desse processo.
A Comissão Europeia terá de trocar informação com o Parlamento Europeu e o processo de negociação será acompanhado pelo conselho de Assuntos Gerais, no qual Portugal é representado pela secretária de Estado dos Assuntos Europeus. “Este apresentará as propostas para decisão do Conselho Europeu. Finalmente, o acordo terá de ser ratificado pelo Parlamento Europeu“, explica Margarida Marques.
O que vem aí então?
Já sabemos que o Reino Unido vai sair do mercado único europeu, mas é incerto em que termos será feito o novo acordo comercial. A incerteza continua do lado do Governo britânico que terá de apresentar uma proposta. Qual será? Não há paralelo que se pode usar como comparação: “Não queremos o modelo canadiano ou um modelo que já exista. Theresa May quer um acordo completamente novo que seja adequado à ligação tão forte que existe com os Estados-membros”, explica a embaixadora britânica.
Theresa May quer um acordo completamente novo que seja adequado à ligação tão forte que existe com os Estados-membros.
No fundo, Kirsty Hayes diz que o desafio é encontrar “um novo relacionamento com a UE que seja benéfico para ambos os lados e dê as melhores oportunidades para a livre negociação de bens e serviços”. As negociações oficiais só devem começar daqui a uns meses, mas já existiram contactos informais com o Governo português, tal como ocorreu na visita do Presidente da República ao Reino Unido.
Na comitiva estava a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, mas também o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro. Ambos tiveram um encontro com Alan Duncan, o secretário de Estado britânico responsável pelos assuntos europeus mas também com os presidentes da comissão dos assuntos europeus da câmara dos lordes e da câmara dos comuns. A preocupação agora está centrada na situação da comunidade portuguesa no Reino Unido.
É na mobilidade de pessoas que estará a maior indefinição deste acordo futuro, uma vez que o Reino Unido tem muitos cidadãos estrangeiros, mas também porque existem muitos britânicos em Estados-membros. Pelos encontros que teve e pelo discurso de May, Margarida Marques interpreta a ambição britânica: “Não pretende o mercado interno, mas pretende um acordo comercial de livre circulação de bens, serviços e capitais com a UE. Por outro lado, propõe um outro acordo que tem a ver com a mobilidade das pessoas“.
Os Estados-membros exigiram que qualquer acordo relativo à mobilidade das pessoas terá de ser feito numa base de reciprocidade.
Contudo, a secretária de Estado relembra que “os Estados-membros exigiram que qualquer acordo relativo à mobilidade das pessoas terá de ser feito numa base de reciprocidade”. “A comunidade britânica que vive nos 27 Estados-membros, incluindo Portugal, é uma comunidade grande e, portanto, o Reino Unido estará também interessado em salvaguardar os seus interesses“, argumenta Margarida Marques ao ECO.
O foco está, neste momento, no acordo comercial e na livre circulação de pessoas, mas há outras áreas onde se espera que os britânicos continuem aliados da UE. Como relembra a embaixadora britânica: “Estamos a sair da União Europeia, mas não estamos a sair da Europa. Os laços são para manter”. Exemplos? A luta contra o crime e o terrorismo, assim como a estratégia de defesa. Nesse aspetos, “nenhum Estado-membro pode agir sozinho”, analisa Margarida Marques, referindo que “é natural que o Reino Unido queira a cooperação da UE”.
Estamos a sair da União Europeia, mas não estamos a sair da Europa. Os laços são para manter.
Mas a colaboração não se esgotará nesses temas. Também na investigação e na inovação há interesse dos dois lados. “As universidades britânicas já se tinham pronunciado nesse sentido. Há uma comunidade portuguesa importante de investigadores no Reino Unido da mesma forma que há muitos projetos europeus com a participação de instituições britânicas, os programas de ciência da UE. Nada impede que o Reino Unido continue a beneficiar desses programas”, esclarece ao ECO a secretária de Estado dos Assuntos Europeus.
Contudo, a pergunta impõe-se: o Reino Unido vai beneficiar do universo UE sem ter de pagar? Margarida Marques é direta a resposta: “A intenção da União Europeia é que o Reino Unido não fique, na relação com a UE, numa situação privilegiada relativamente àquilo que são os atuais Estados-membros”. No entanto, é “prematuro fazer mais observações” dado que ainda não existe uma proposta dos britânicos à UE.
A saída do mercado único europeu, os impostos e a libra
Há muitas questões ainda por responder. O processo, que se prevê que demore dois anos, ainda vai nos primeiros capítulos. Sabe-se apenas que o Reino Unido vai sair do mercado único europeu, mas não se sabe de que forma. Contudo, com esta informação, surgem logo dois problemas: de que forma vão ser tributados os financiamentos provenientes do Reino Unido? E de que forma vai ser feita a tributação aduaneira na entrada e saída de bens?
As duas questões são levantadas por Miguel Puim, senior advisor da EY, ao ECO, dado que as diretivas europeias davam um conjunto de garantias, mas para se aplicarem o país tem de pertencer à UE. Isso vai deixar de acontecer no caso do Reino Unido. Assim, para as empresas, surge um primeiro problema: “Consoante o acordo futuro, as empresas portuguesas que tenham financiamentos junto de entidades do grupo no Reino Unido podem ser prejudicadas porque os juros pagos por entidades portuguesas a entidades associadas no Reino Unido beneficiam [atualmente] de uma ausência de retenção na fonte em Portugal prevista na diretiva juros e royalties“, explica o fiscalista.
Exportações de Portugal para o Reino Unido
Esta é uma das questões que deve ser salvaguardada nas negociações futuras, mas há outro problema relacionado com a transação de bens que poderá prejudicar as exportações portuguesas. “Atualmente, na União Europeia, um dos princípios fundamentais é a livre circulação de bens, o que se materializa na ausência de tarifas aduaneiras internas. É do interesse do Reino Unido e da União Europeia estabelecer os acordos necessários para que aquelas trocas de bens continuem a não ser oneradas com tarifas aduaneiras”, considera Miguel Puim, referindo que um período de vazio fiscal “teria efeitos lesivos”.
Contudo, isto verifica-se essencialmente no caso dos bens. No caso das exportações de serviços prevê-se que o impacto seja menor. “Não deverá existir um impacto adverso na tributação dos serviços, dado que os princípios para evitar a dupla tributação encontram-se salvaguardados em acordo autónomo. Contudo, de um ponto de vista não fiscal, eventuais limitações à livre circulação de pessoas poderão impactar o setor dos serviços, nomeadamente, o turismo de longa duração“, explica Miguel Puim ao ECO.
E este hard Brexit anunciado vai beneficiar alguém? O resultado dependerá dos pormenores finais do acordo posterior, mas um inquérito feito em novembro às empresas portuguesas presentes no Reino Unido foi claro: nenhum negócio beneficia com a saída do mercado único europeu. Este estudo da Câmara de Comércio Portuguesa no Reino Unido revela que 19,44% dos inquiridos, sócios da instituição, já suspenderam ou adiaram decisões de investimento ou expansão na sequência do resultado do referendo que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia.
A embaixadora britânica garante que as empresas portuguesas no Reino Unido continuarão a ser bem-vindas e que reina a calma. As dúvidas estão a ser respondidas e, segundo Kirsty Hayes, está-se a trabalhar para “encorajar ainda mais o investimento aqui”, em Portugal. Até porque, como a própria recorda, “em termos bilaterais, o Reino Unido é uma das poucas economias europeias com quem Portugal tem um saldo comercial positivo”.
Mesmo no turismo, Hayes acredita que Portugal “vai ficar muito atraente para os britânicos”. “A única coisa que pode ser um risco para Portugal é a interação entre a libra esterlina e o euro, mas continua a ser menos caro do que o Reino Unido. Não será um problema muito grande”, garante ao ECO. Mas será mesmo assim? Contactadas pelo ECO, as principais exportadoras portuguesas para o mercado britânico não responderam ou recusaram-se a elaborar sobre o assunto.
Os bens que o Reino Unido importa de Portugal
Os bens que o Reino Unido exporta para Portugal
A Bosch, por exemplo, responde que “até ao momento” não sentiu “qualquer impacto”. “É demasiado cedo para se ver efeitos colaterais quando a primeira-ministra inglesa diz que vai demorar dois anos a sair da CE”, escreve a empresa. No entanto, em Londres, a opinião é diferente. O Presidente da Câmara de Comércio Portuguesa no Reino Unido e CEO a True Bridge Consultancy avisa que “os sinais para as pessoas não são animadores”, referindo, no entanto, que não se sabe o que será este hard Brexit. “Continuamos sem saber o que vai acontecer. É óbvio que será uma negociação difícil“, admite.
Apesar de beneficiar da desvalorização da libra, já que a True Bridge exporta serviços, Bernardo Ivo Cruz revela que ter uma empresa registada no Reino Unido não é garantia de permanência no país. Mesmo para quem paga impostos há mais de cincos anos, o processo burocrático é complicado, explica ao ECO, isto porque “obriga ao preenchimento de 85 páginas onde é necessário identificar todas as vezes que se saiu do Reino Unido (dia, mês e ano)”.
Os sinais para as pessoas não são animadores.
“Neste momento, há mais preocupações das associações do que das empresas, com exceção dos efeitos sentidos ao nível da libra. É o caso dos supermercados portugueses que abastecem o “mercado da saudade” que já sentem uma agravamento de 20% a 25% nas suas importações face há seis meses. Já nas empresas de serviços ninguém sente, até são mais competitivos pelo efeito cambial, exceto se tiverem de enviar provimentos”, remata Bernardo Ivo Cruz.
Já o economista João Carvalho das Neves, em declarações ao ECO, é mais cauteloso. “Temos um Governo que tem mostrado capacidade de negociação, não é caso para alarmismos”, argumenta, afirmando que as “dificuldades burocráticas serão temporárias”. O professor do ISEG considera que “especula-se muito”, mas na prática as situações são ultrapassáveis. No máximo, quem pode ser afetado são as “empresas com menor capacidade de recursos humanos para gerir determinados processos”.
Temos um Governo que tem mostrado capacidade de negociação, não é caso para alarmismos.
É de realçar que “há sempre custo de adaptação em tudo”. “Quando se mudam as coisas, obviamente que há um período de ajustamento”, explica ao ECO. Contudo, Carvalho das Neves considera que “teorizamos muito sobre estas questões, mas muitas vezes os particulares desconhecem os direitos que têm por serem membros de determinado país”. Em suma, o economista argumenta que não é por causa desses direitos que as empresas investem em Portugal: “Não vêm para cá por causa disso. Vêm para cá porque Portugal é um país agradável, tem boa temperatura, boa comida, os portugueses são simpáticos… É isso que os atrai”.
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