Os cinco problemas que António Costa tem de resolver no regime simplificado de IRS
Rejeitada por ambos os lados da bancada parlamentar no debate do Orçamento, a nova proposta de regime simplificado do IRS também é criticada por fiscalistas. O que é preciso mudar na especialidade?
Esta quinta-feira, António Costa recebeu críticas de todas as direções no plenário, quando os partidos discutiram a proposta do Governo para o Orçamento do Estado para 2018 — em especial sobre a proposta de alteração ao regime simplificado do IRS, que se aplica aos trabalhadores independentes e também a empresários de profissões liberais. O Governo garante que não haverá um agravamento do IRS para ninguém, mas as mudanças ao regime podem resultar num aumento de impostos para alguns grupo e tem vários problemas na sua redação. António Costa já admite rever a proposta.
Anteriormente, os trabalhadores independentes apenas viam tributado 75% do seu rendimento bruto — os outros 25% eram considerados despesas e não eram tributados. As taxas do regime atual, no entanto, variam conforme os casos — os 25% aplicam-se aos trabalhadores independentes, mas são diferentes para outros dos abrangidos. No novo regime, apenas 4.104 euros são considerados despesas justificadas automaticamente e por isso não tributáveis — para conseguir que uma fatia maior do seu rendimento fique isenta de imposto, os trabalhadores terão de apresentar despesas, que podem ser prestações de serviços ou aquisições de bens, cujas faturas sejam comunicadas à Autoridade Tributária e Aduaneira, encargos com imóveis; ou ainda despesas com pessoal a título de salários e importações.
No debate do Orçamento do Estado, Costa assumiu problemas na proposta. “Claro que é justo aproximar os rendimentos de categoria A dos de categoria B”, disse António Costa. Contudo admitiu que poderá haver problemas para uma pequena parte dos abrangidos — cerca de 10% das pessoas poderão ser afetadas negativamente. “Onde se verificar, cá [estará o Governo] disponível para corrigir”, garantiu o primeiro-ministro.
Importa destacar que a proposta não afeta apenas os trabalhadores a recibos verdes. Anabela Silva, fiscalista na EY, sublinha isso mesmo: “Temos falado, de facto, na questão dos recibos verdes por serem as pessoas que até agora não tinham de justificar qualquer tipo de despesas, mas isto aplica-se a qualquer pessoa abrangida pelo regime simplificado, incluindo por exemplo o alojamento local“.
O que pode o Governo fazer para resolver o problema?
Os fiscalistas consultados pelo ECO foram críticos, sem exceção, do novo regime proposto pelo Governo. João Espanha considera que não há forma de alterar a proposta do Governo de maneira a não haver aumento de impostos para ninguém já que “o que está em cima da mesa passa por substituir o coeficiente de dedução [os 25% do rendimento bruto] por despesa efetiva”. Ainda assim, o fiscalista admite que “o Governo pode criar uma cláusula de salvaguarda, à semelhança do que fez com o IMI, ou então criar um regime transitório no qual as novas regras não se aplicam, durante um ano ou dois, acima de um determinado valor”.
O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rogério M. Fernandes Ferreira, também admite a hipótese de o Executivo criar um “regime transitório, que garante que as novas regras do regime simplificado só se aplicam em 2019”. O especialista afirma que o Governo poderia ter tomado outras opções, por exemplo, mexer na taxa de 25%. No entanto, “reduzir a taxa é uma forma de aumentar impostos, e não se pode dizer o contrário”, sublinha o antigo membro da equipa de António Guterres.
As opções para Manuel Faustino, no entanto, são mais reduzidas. O especista conhecido como o “pai do IRS”, já que foi primeiro diretor dos serviços do IRS do Fisco, diz que o novo regime simplificado está mal feito. “No mínimo”, explicou ao ECO, “o mais avisado e para não criar um caos e para não levar uns 600 mil contribuintes às repartições lá para junho, melhor é recomendar ao Governo que crie um grupo de trabalho técnico para durante o ano que vem analisar e criar [outra coisa], não fazer alterações avulso” à proposta atual.
Todos os fiscalistas dizem que tecnicamente não faz sentido. O Governo tem de decidir se quer ou não um regime forfetário. Um regime forfetário com faturas não existe, se não é uma contabilidade organizada com limites.
O fiscalista Luís Leon concorda, e é claro: “O Governo tem de eliminar a proposta de alteração”. Para o especialista, é óbvio que a proposta está mal feita. “Ou o regime é forfetário ou não é. Se o é, então o Governo tem de revogar a proposta de alteração e voltar a ser como dantes”, afirmou. “Todos os fiscalistas dizem que tecnicamente não faz sentido. O Governo tem de decidir se quer ou não um regime forfetário [em que o valor é definido por convenção]. Um regime forfetário com faturas não existe, se não é uma contabilidade organizada com limites. Não vejo uma situação em que se altere o regime sem que ninguém tenha um agravamento fiscal“, concluiu.
Quais são, afinal, as consequências práticas desta medida? Os fiscalistas consultados pelo ECO apresentaram várias consequências negativas, que António Costa terá agora de tentar alterar na especialidade:
1. Certas profissões serão afetadas negativamente
Embora o regime não se aplique apenas aos trabalhadores independentes, é possível imaginar situações concretas em que a sua aplicação seria particularmente negativa. Assunção Cristas e o CDS-PP têm dado o exemplo dos agricultores. No debate do Orçamento do Estado, a dirigente centrista disse: “Sem o assumir, está a matar o regime simplificado”, já que, por exemplo, “pequenos proprietários florestais terão um agravamento de 500 ou 600%”.
O fiscalista Manuel Faustino deu o mesmo exemplo. “Veja um agricultor. Tem certo tipo de despesas que nunca conseguirá provar. É completamente absurdo. Isto é feito por alguém que sempre viveu no ar condicionado. Alguém que nunca pôs os pés numa levada de água para regar“. E foi mais longe com um exemplo mais concreto: “Os agricultores tinham subsídios para não produzirem que eram divididos por cinco anos e eram introduzidos em IRS, porque visavam de algum modo uma substituição de rendimentos. Se ele é pago para não trabalhar que despesas é que ele vai ter para comprovar?”
A fiscalista Anabela Silva, apresenta o mesmo argumento para certas profissões liberais. “O que acontece se as pessoas não incorrerem em despesas?”, perguntou. “Em muitas profissões liberais as despesas relacionadas com a atividade em alguns casos não são muito significativas. São pessoas que podem vir a pagar mais imposto”.
2. Não está esclarecido como funciona o mínimo de 4.104 euros
Os fiscalistas consultados pelo ECO também criticaram a redação da lei ao não tornar claro como deveria funcionar o mínimo de 4.104 euros em que as despesas são consideradas justificadas. “Outra questão é clarificar o volume das despesas a justificar”, diz Anabela Silva. “Na proposta, o que depreendo é que se deve deduzir ao rendimento bruto as despesas apresentadas, mas não explica que é só a parte para lá dos 4.104 euros. Deveria ser especificado”.
Manuel Faustino não poupa os legisladores ao dizer que houve uma “confusão completa e absurda na criação da lei. Eles dizem que 4.000 euros não é preciso provar. Ou seja, se eu consigo provar 15 mil euros de despesas, os primeiros 4.000 são o que não é preciso provar. E isso não vai dar 19 mil, vai dar 15 mil, vão dizer as Finanças, se isso não ficar devidamente escrito”.
3. As despesas grandes só podem ser deduzidas num ano
Luís Leon e Ana Duarte chamam a atenção para outro problema que a lei apresenta para os trabalhadores independentes ou profissionais liberais abrangidos por este regime — o facto de compras avultadas, como um carro, só poderem ser deduzidas num único ano.
“Por exemplo se pensarmos nos trabalhadores a recibo verde que precisam de uma viatura, coloca-se a questão — se compro a viatura este ano, tenho um elevado valor na e-fatura. Mas nos anos seguintes também não vou poder deduzir a quota parte da viatura”, sublinha a fiscalista Ana Duarte. No regime atual, sem a alteração proposta pelo Governo, há “um valor fixo que inclui todo o tipo de despesas que pudessem ser precisas, com um balanceamento ao longo dos anos, com o valor fixo a ser sempre o mesmo”.
Há mais exemplos. “No alojamento local, imagine que há custos com o melhoramento do imóvel, só iria poder deduzir esses custos nesse ano… a lógica acaba por ser a mesma”, completa Ana Duarte.
4. Que despesas podem ser deduzidas?
E ao nível das despesas não é tudo. Tanto a proposta de lei como os governantes têm sido vagos em relação a quais despesas que são dedutíveis. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais tem dito que as “relacionadas” com a atividade estariam incluídas, mas essa definição não é de todo fechada. António Mendonça Mendes deu o exemplo de “as contas de supermercado” no caso dos tradutores (que tipicamente trabalham em casa), os fatos no caso dos advogados ou os carrinhos de bebé no caso das amas.
Anabela Silva considera que está tudo muito indefinido. “Uma pessoa pode entender que uma determinada despesa é relacionada com a atividade e outra não. A questão por exemplo da roupa de trabalho. Se um fato é ou não é uma despesa relacionada com a atividade — também pode ser usado para um evento social. Isto vai gerar muita discussão entre a AT e os contribuintes”.
Além disso, “o e-fatura não resolve o problema, porque não permite partir despesa”, lembra Luís Leon. “Por exemplo, afetar à atividade uma parte da fatura da eletricidade e a outra não. Se for o contribuinte a partir a fazer a divisão, numa inspeção [do Fisco] o tema pode ser dado a discussão”, frisou, ou seja, “introduz litigância, num regime que era simplificado”.
Conclusão? “Ou haverá uma clarificação ou podemos esperar aqui bastante litigância, à semelhança do que já acontece no IRC, nas empresas. Esta é uma área que de facto deveria ser clarificada se avançar o regime nos moldes que estão atualmente previstos”, diz Anabela Silva.
5. Para combater a fraude, porque não começar no IRC?
Segundo o relatório da proposta orçamental, a medida serve para “combater e evitar práticas de evasão fiscal”. Mas para o fiscalista Manuel Faustino, essa justificação não faz sentido.
“Há, absurdamente, uma insuficiência técnica nesta proposta”, afirmou ao ECO. “Apanhou toda a gente de surpresa. Modéstia à parte, eu reputo conhecer um bocadinho o que é o IRS e tenho a dizer que não existe por detrás qualquer fundamentação técnica nem sequer estatística sobre” fraude a este nível.
“Hoje dizem que há suspeições que há gente a usar isto indevidamente. Então e nas empresas não há?”, pergunta. “O IRC também tem um regime simplificado. Quem está nesse regime? Quem vê que lhe interessa, porque os restantes estão na contabilidade organizada. A existir aproveitamento, é mais no IRC do que no IRS!“, conclui.
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