Bancos voltam a apostar em dívida pública e deixam “troika” em alerta
Juros portugueses em mínimos históricos dão "conforto" aos bancos para apostar na dívida pública. Mas instituições internacionais como o FMI, Bruxelas e BCE estão em alerta face ao aumento do risco.
Não foi por acaso que nas últimas semanas as instituições internacionais da “troika” vieram alertar para o aumento considerável da dívida pública nos balanços da banca portuguesa. Os principais bancos nacionais voltaram a apostar em força em títulos de dívida soberana em 2018, à boleia da política monetária inédita na Zona Euro, deixando Fundo Monetário Internacional (FMI), Comissão Europeia e Banco Central Europeu (BCE) de sobreaviso: atenção que Portugal continua vulnerável e um aumento dos juros representaria um choque no sistema bancário, avisam.
No ano passado, Caixa Geral de Depósitos (CGD), BCP, Santander Totta, Novo Banco e BPI viram a sua carteira de dívida pública portuguesa engordar cerca de 30% para mais de 21 mil milhões de euros. Mais do que o número absoluto, é a tendência que preocupa as autoridades internacionais: é cada vez maior o peso da dívida pública no balanço dos bancos, tendo passado de 1% em 2008 para cerca de 9% dez anos depois.
Os alertas daqueles que foram os nossos credores em 2011 não demoraram a surgir:
- Primeiro foi o FMI a deixar o aviso: “Num cenário grave, aumentos agressivos nas yields das obrigações dos governos iriam gerar perdas significativas para bancos da EBA [Autoridade Bancária Europeia] em Itália, Portugal e Espanha, em particular”.
- Depois veio o alerta de Bruxelas: “Em termos de composição dos ativos bancários, um aspeto importante é a elevada parcela de dívida soberana doméstica em alguns Estados-membros da Zona Euro. As participações dos bancos em dívida soberana doméstica têm aumentado desde 2008 nos países mais vulneráveis”.
- Por fim, foi Andrea Enria, chairman do Conselho de Supervisão do Banco Central Europeu (BCE), a avisar: “A questão do tratamento da exposição à dívida pública é importante. Na minha opinião, é principalmente uma questão de concentração do risco. Se há um aumento dos juros destas obrigações, o impacto potencial nestes bancos pode ser muito grande”. Uma visão reiterada pelo próprio BCE já esta semana.
Contactado pelo ECO, o Banco de Portugal também disse estar em cima do assunto:
- “A exposição dos bancos portugueses a dívida pública é um tema acompanhado pelo Banco de Portugal. De facto, a elevada liquidez do setor bancário tem-se traduzido num aumento da sua exposição a títulos de dívida pública, a qual ascendia a 12,7% do ativo total em dezembro de 2018, dos quais 9% relativos ao soberano português e o remanescente em títulos de dívida pública de outros países da área do euro, como Espanha e Itália. Adicionalmente, a maturidade média dos títulos de dívida pública em carteira dos bancos tem vindo a aumentar.”
Banca volta a apostar na dívida portuguesa
Fonte: Relatórios e contas dos bancos
Se é certo que cada banco é responsável pelas decisões que toma, há um contexto de mercado que tem promovido esta situação. E aqui o grande responsável é o BCE, que tem promovido um ambiente de taxas de juro tão baixas que os bancos têm procurado alternativas no mercado de dívida para alavancar o seu tradicional negócio de depósitos e empréstimos. Mas há mais razões, como salientam os analistas ouvidos pelo ECO.
“O facto de estarmos a viver um período de taxas de juro negativas faz com que alguns bancos optem por concentrar mais os investimentos em ativos com taxas mais elevadas ou menos negativas e aí a dívida portuguesa destaca-se”, resume Filipe Silva, do Banco Carregosa. “Outros fatores que contribuem para este aumento: o facto de estes títulos serem tratados como ativos líquidos e assim cumprirem com a regra de liquidez, podendo ser usados como garantia junto do BCE”, acrescenta o responsável.
Filipe Garcia, economista da IMF, concorda e partilha mais algumas das motivações que estarão por detrás das decisões dos gestores dos bancos. “A melhoria do rating de Portugal e a evolução positiva do preço em mercado secundário tem permitido não só receber os juros, mas também obter valorizações de capital“, explica.
"O facto de estarmos a viver um período de taxas de juro negativas faz com que alguns bancos optem por concentrar mais os investimentos em ativos com taxas mais elevadas ou menos negativas e aí a dívida portuguesa destaca-se.”
Os resultados destes investimentos estão naturalmente a ter reflexos positivos nas contas dos bancos. BCP e Santander Totta revelaram que lucraram mais no último trimestre por causa de operações relacionadas com dívida pública. Mas esta aposta tem beneficiado a generalidade da banca, na medida em que os rendimentos dos juros dos títulos reforçam a margem financeira e compensam o “marasmo” do negócio core da banca dos depósitos e empréstimos.
“Quando se trabalha com taxas de juro negativas e margens financeiras relativamente estreitas, acaba depois por ser uma decisão de cada instituição onde fazer os seus investimentos”, nota Filipe Silva, salientado que o aumento do peso da dívida pública contra outros ativos também deve ser visto à luz da regulação. “Não se pode apenas ver a troca de um ativo financeiro por outro, pois é necessário ver o impacto que o mesmo tem no nível de capital de cada banco”, explica.
Os motivos dos receios em relação à dívida portuguesa são sobejamente conhecidos. Não vai há muito tempo que os mercados fecharam o acesso de Portugal ao financiamento, obrigando o país a pedir ajuda financeira externa quando exigiam juros acima de 7% as taxas chegaram a atingir os 17% no pico da crise. Por esta altura, as autoridades bancárias queriam romper com a ligação banca-soberano que ameaçava o sistema financeiro, não só em Portugal mas na Zona Euro. Por outro lado, a dívida pública portuguesa ascende atualmente a cerca de 250 mil milhões de euros e, apesar dos esforços no bom sentido, ainda está longe de ser sustentável.
Banca exposto a Portugal, Espanha e Itália
Fonte: Banco de Portugal
Mas não é só à dívida portuguesa que os bancos têm aumentado exposição. E os alertas internacionais e nacionais também vão por aí. Nos balanços também há cada vez mais dívida pública de Espanha e Itália, dois países que estiveram a braços com crises políticas muito recentemente.
Para Filipe Garcia, a opção de expor-se a outros soberanos que não o doméstico “é mais difícil de entender” na medida em que o banco acaba por assumir risco de outros países. “Compreende-se que seja um risco aceitável para os bancos porque a perceção de risco de um banco está sempre ligada à situação do seu país de origem. Ou seja, os bancos podem já considerar que estão sempre a correr o risco país, associado à dívida pública, estando ou não nela investidos”, diz o economista da IMF.
O Banco de Portugal também rejeita que ter dívida de vários soberanos possa ser visto como uma estratégia de diversificação de risco. “Na medida em que que as variações nas yields dos títulos de dívida soberana europeia se encontram positivamente correlacionadas, os ganhos de diversificação são limitados”, alertou o supervisor nacional no último Relatório de Estabilidade Financeira.
"Compreende-se que seja um risco aceitável para os bancos porque a perceção de risco de um banco está sempre ligada à situação do seu país de origem. Ou seja, os bancos podem já considerar que estão sempre a correr o risco país, associado à dívida pública, estando ou não nela investidos.”
Neste relatório, o Banco de Portugal deixou as suas reservas quanto à “elevada concentração do sistema bancário” à dívida pública e calculou o impacto de um choque no mercado.
“A elevada exposição a esta classe de ativos torna os bancos portugueses também particularmente sensíveis a reavaliações dos prémios de risco nos mercados financeiros, dado que uma proporção significativa destes títulos são contabilizados no balanço ao valor de mercado. De acordo com uma análise de sensibilidade do rácio de fundos próprios principais (Common Equity Tier 1 — CET 1) uma eventual subida de 100 pontos base (p.b.) das yields da dívida pública nacional detida pelos bancos portugueses, teria um impacto direto negativo de cerca de 47 p.b. no rácio de capital regulamentar (ignorando potenciais estratégias de hedging adotados)”, alertou a instituição presidida Carlos Costa em dezembro passado.
Para já, o cenário parece controlado. “O comprometimento mostrado pelo BCE em defender o euro dá conforto ao investimento em dívida pública de países mais endividados”, diz Filipe Garcia. “Mas isto tem os seus efeitos: a perceção de risco acaba por estar enviesada (…). Alterações nas taxas de juros terão de ser suaves e progressivas ao longo do tempo, caso contrário poderão, sim, levar a uma nova crise, caso subissem rapidamente”, alerta Filipe Silva.
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