Portagens, propinas e quotas de ordens. 11% das cobranças coercivas nada têm a ver com impostos
Em 2018, Fisco cobrou 140 milhões a favor de entidades externas, na maioria privados, algo que sindicatos dizem desviar foco do combate à fraude. Cobranças coercivas disparam 32% no primeiro semestre.
Em 2018, a Autoridade Tributária arrecadou 140,13 milhões de euros em receitas não fiscais, que respondem por 10,86% do total de cobranças coercivas conseguidas pela AT ao longo do ano passado. Mas apesar de em termos de receita efetiva o peso ser relativamente reduzido, segundo os representantes dos trabalhadores dos impostos cobrar dívidas não fiscais exige o triplo do trabalho que a cobrança de impostos.
O ECO solicitou dados desagregados dos valores cobrados pela Autoridade Tributária na sequência das queixas apresentadas pelos representantes dos trabalhadores dos impostos aos deputados da Comissão de Orçamento e Finanças (COFMA) da Assembleia da República. Pelo debate que se seguiu entre sindicatos e deputados, ficou claro que nenhuma das partes conhecia o peso das cobranças feitas pela AT em nome de entidades externas.
De acordo com os dados enviados pela Autoridade Tributária, em 2018, os trabalhadores do Fisco cobraram 140,13 milhões de euros em nome de entidades externas — que inclui portagens, quotas de ordens profissionais, taxas moderadoras ou propinas em atraso –, uma subida de 3,4% face ao valor cobrado em 2017 (135,5 milhões) e mais 10% que em 2016 (127,3 milhões de euros). Já em 2015, a cobrança a favor de entidades externas atingiu os 182,14 milhões de euros.
Apesar do total do valor cobrado em nome de entidades externas ter aumentado entre 2016 e 2018, certo é que o peso destas receitas no total das cobranças coercivas executadas pelo Fisco tem evoluído de forma mista. Os 140 milhões cobrados em 2018 equivaleram a 10,86% dos 1,29 mil milhões em cobranças coercivas, ao passo que os 135,5 milhões cobrados em 2017 equivaleram a 12,71%. Em 2016 este peso tinha sido de 8,27% e, em 2015, de 14,15%.
Evolução da cobrança coerciva
Somando os valores entre 2015 e junho de 2019, os anos considerados nos dados enviados pela AT, os trabalhadores dos impostos cobraram um total de 657 milhões de euros em nome de terceiros no período, o equivalente a 11% do total das cobranças coercivas executadas no mesmo período, que chegaram aos 5,76 mil milhões de euros.
Os dados fornecidos pela AT revelam ainda que entre janeiro e junho deste ano as cobranças coercivas da AT atingiram os 575,6 milhões de euros, mais 32% que os 436,3 milhões registados no primeiro semestre de 2018. Do total de cobranças coercivas registadas entre janeiro e junho do corrente ano, 71,8 milhões (12,5%) foram para entidades externas.
Palavra aos legisladores
Tal como os representantes dos trabalhadores do Fisco apontaram aos deputados da COFMA no início de julho, apesar de não quererem atuar como ‘cobradores do fraque’ de entidades privadas, certo é que estão legalmente obrigados a fazê-lo, confirmou a AT ao ECO.
“A Autoridade Tributária tem como missão atribuída por lei a arrecadação e gestão de impostos. A cobrança de impostos, voluntária ou coerciva, decorre dos poderes de autoridade que a lei atribui à AT. É também a lei que atribui à AT competência para a cobrança executiva de entidades externas“, avançou a AT ao nosso jornal.
E foi isto que os sindicatos procuraram explicar aos deputados: como estão legalmente obrigados, não podem senão cobrar estas dívidas, mesmo desviando recursos do combate à fraude e evasão. Pediram por isso alterações legislativas para que a AT não continue a cobrar dívidas de terceiros. É que, conforme Nuno Barroso, da Associação dos Profissionais da Inspeção Tributária (APIT), explicou ao ECO, cobrar as multas em nome de concessionárias rodoviárias ou em nome de ordens profissionais dá o triplo do trabalho do que cobrar dívidas fiscais.
“Tendo em conta o peso [das cobranças em nome de terceiros], então será menos do que o tempo dispensado pelos trabalhadores dos impostos”, reagiu Nuno Barroso. “Não é exagero dizer que o tempo que se ‘perde’ com estas dívidas não fiscais é o dobro ou triplo do peso que têm nas cobranças coercivas“, afirmou. E isto não tem apenas a ver com o processo de cobrança propriamente dito, mas com o total de esclarecimentos, dúvidas e conflitos que estas dívidas envolvem.
“Na maior parte dos casos estão em causa portagens, dívidas pequenas, que quando chegam a esta fase já se multiplicaram por diversas vezes. E o visado fica sempre surpreendido pelo valor e por não estar à espera, e a própria comunicação da AT não é esclarecedora. Estas são as cobranças que motivam maior número de pedidos de esclarecimento ou queixas”, detalhou o líder da APIT ao ECO.
“Desde o início que temos manifestado repudio e a não-aceitação da situação, que expõe o Fisco a ser o ‘cobrador do fraque’ de privados”, explicou Paulo Ralha, do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, aos deputados presentes na COFMA no início do mês. “Falamos de dívidas de pouca monta à partida que, quando chegam à fase de cobrança por parte das Finanças, já se transformaram em dívidas enormes, o que provoca, como seria expectável, uma grande revolta nos contribuintes”, acrescentou Nuno Barroso na mesma ocasião.
“A Autoridade Tributária não tem grandes benefícios com esta prática”, acrescentou ainda Paulo Ralha, referindo-se ao facto da AT ficar com 35% do valor total cobrado em nome de entidades externas. “Se calhar devíamos estar a discutir os meios da AT e questionar se estão bem orientados para combater as ‘grandes fugas’, dados os conhecimentos e capacidades dos trabalhadores dos impostos, se estão bem alocados e se a AT tem meios suficientes para esse trabalho ser feito”, disse Nuno Barroso aos deputados.
Foi ainda durante a audição na COFMA que as duas estruturas pediram aos deputados que avançassem com alterações legislativas para que os recursos da AT deixem de ser utilizados como “cobradores do fraque” para entidades privadas. E esta é uma questão em que o Governo também admite precisar de uma revisão.
Em entrevista recente ao Observador, António Mendonça Mendes, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, admitiu que a imposição desta função à Autoridade Tributária é um papel que precisa de ser reavaliado. “Há uma reflexão que temos todos de fazer que é a utilização do processo de execução fiscal por dívidas que não são fiscais”, avançou na entrevista concedida em junho.
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