Trabalhadores com recibos verdes fazem ginástica para irem de férias
Enquanto uns rumam à praia à boleia do direito a férias, outros fazem ginástica de rendimentos e oportunidades para conseguir uns dias de descanso. Fomos conversar com os trabalhadores independentes.
Para muitos, verão é sinónimo de mergulhos no mar, banhos de sol, copiosas quantidades de gelado e férias; Mas para os trabalhadores independentes, esse cenário relaxante não é assim tão acessível, já que tirar uns dias para descansar implica frequentemente perder rendimentos.
Sem direito a férias remuneradas, estes portugueses ora reforçam as poupanças ao longo do ano para compensar o período em que escolhem desligar, ora apenas reduzem o fluxo de trabalho, não deixando de cumprir algumas tarefas, para garantir uma remuneração mínima que lhes permita chegar ao mês seguinte com as contas em ordem.
Foi em 1936, em França, que o direito a férias pagas apareceu em termos legislativos, pela primeira vez. Quatro anos depois, em 1937, Portugal seguiu esse exemplo, tendo criado o primeiro diploma que garantia o direito ao descanso remunerado.
Atualmente, o direito a férias para os trabalhadores por conta de outrem está consagrado na Lei Laboral, sendo justificado com a necessidade de “proporcionar ao trabalhador a recuperação física e psíquica, condições de disponibilidade pessoal, integração na vida familiar e participação social e cultural”. De acordo com o artigo 238.º do Código do Trabalho, o período anual de férias para quem trabalha para uma entidade empregadora tem a duração mínima de 22 dias úteis. Esse período pode ser encolhido em dois dias (para um máximo de 20 dias), no ano da admissão do trabalhador, ocasião em que tem direito a gozar dois dias úteis por cada mês da duração do contrato.
Na Função Pública, está estipulado um descanso de igual duração: 22 dias. A esse período acresce, contudo, um dia útil de férias por cada 10 anos de serviço “efetivamente prestado”, segundo explica a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. A duração do período de férias pode ainda ser aumentada como recompensa do desempenho.
No quadro da revisão recente da Lei Laboral, as bancadas parlamentares da esquerda chegaram a pôr em cima da mesa a devolução dos três dias de férias (para um período de 25 dias úteis), que a Troika tirou, em 2012, aos trabalhadores portugueses, mas a medida acabou por ficar pelo caminho.
Sem esses 25 dias e sem sequer os 22 dias já previstos no Código do Trabalho, estão atualmente os trabalhadores por conta própria, que ao serem considerados prestadores de serviços não gozam do direito a férias remuneradas. Portanto, tirar uns dias para descansar para quem passa recibos verdes não é fácil e implica sempre alguma ginástica.
Se há vantagens em ser trabalhador independente — da flexibilidade de horário à liberdade em relação à hierarquia das entidades às quais prestam serviços — há também grandes desvantagens neste regime, nomeadamente a falta de proteção no necessário momento de descanso. Isto ainda que, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, esteja claro: “Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas”.
Os recibos verdes não só não têm direito a férias pagas, como não recebem subsídio de férias. Resultado: tirar uns dias para relaxar é frequentemente sinónimo de perda de rendimento e da necessidade de planear ao milímetro (e durante todo o ano) esse desligar.
Não, não é receio [de perder oportunidades]. Já tenho a minha agenda bem composta e clientes fiéis. É mesmo por questões financeiras.
É o caso de Ana Tavares, médica dentista e trabalhadora independente há três anos e meio. Ana conta ao ECO que lhe “é impossível” por questões financeiras tirar, por exemplo, 15 dias consecutivos, tentando assim organizar as férias com os fins de semana prolongados. “Tento apanhar feriados e pontes pelo meio”, diz, referindo que, no máximo, tira uma semana consecutiva para “conseguir estar com os miúdos”.
Além de tirar férias de forma significativamente faseada, a médica dentista prepara esses períodos de descanso antecipadamente para evitar um “corte orçamental enorme”. Para tal, faz “alguma poupança” durante o ano, ainda que, com dois filhos pequenos, não seja fácil colocar esse dinheiro de parte; E aproveita as semanas anteriores às férias para “trabalhar ao máximo para compensar”.
Questionada sobre se essa ginástica decorre de algum receio de perder oportunidades de trabalho, Ana Tavares é clara: “Não, não é receio. Já tenho a minha agenda bem composta e clientes fiéis. É mesmo por questões financeiras”.
Eu na prática nunca paro — emails, telefonemas — porque se perdem oportunidades de negócio.
Outra história conta Paulo Santos, inspetor de crédito e trabalhador independente desde 2008. À semelhança de Ana, também Paulo faz alguma poupança durante o ano para compensar a redução dos rendimentos associada a um período de descanso, do qual, na prática, nunca goza totalmente. Isto porque “se perdem oportunidades de negócio”, justifica.
“Tiro sempre dois ou três dias colados aos fins de semana. Por exemplo, para a semana vou tirar a sexta-feira”, explica ao ECO, referindo que, apesar de não ter um horário fixo, nos dias antes de desligar espreme o trabalho de cinco dias num espaço efetivo de três.
Ainda que estas condições não sejam as melhores e embora admita já ter pensado em passar de trabalhador por conta própria para trabalhador por conta de outrem, Paulo defende que, por agora, não o faria. E a razão é simples: “A verdade é que, por conta de outrem, o meu vencimento seria cerca de 50% inferior”.
Costumo tirar férias, mas não deixo de trabalhar. Caso contrário, não teria como fazer face às minhas despesas.
Ivana de Sousa Santos também não planeia trocar o regime dos independentes pelo dos trabalhadores por conta de outrem, mas a razão que invoca é diferente. “Gosto do que faço e nunca considerei trabalhar por conta de outrem”, garante.
Ao ECO, a tradutora que passa recibos verdes há 18 anos confessa que, para si, tirar férias não é sinónimo de deixar de trabalhar. “Costumo tirar férias, mas não deixo de trabalhar. Caso contrário, não teria como fazer face às minhas despesas”.
Como conjugar trabalho e descanso, não negligenciando nenhum desses dois campos? Ivana indica a flexibilidade de horário e de local para trabalhar como chaves.
A tradutora acrescenta: “Há trabalhos que são regulares (semanais) e por isso não posso deixar de fazer. Esses trabalhos são os que mantenho no mês de julho, aos restantes clientes digo que estou de férias”, declara, esclarecendo que cumpre essas tarefas regulares à noite durante o período de “férias”. “Consigo fazer o trabalho à noite, nas calmas, porque o trabalho é o mais fácil que tenho e mantenho uma grande parte do meu rendimento”.
Ao sacrificar as noites de férias, Ivana consegue algum desafogo financeiro e, por isso, não tem por hábito fazer poupanças durante o ano para compensar este período de menores rendimentos. “O mês de setembro é sempre o mês em que os rendimentos são mais baixos, porque é quando recebo o julho, mas ainda assim consigo fazer face a todas as despesas sem qualquer problema”, remata.
Saio penalizada em rendimentos, sem dúvida, mas tenho a possibilidade de tirar mais dias de descanso que se trabalhasse por conta de outrem.
Sara Silva também não prepara uma almofada financeira específica para acomodar o período de descanso. A médica dentista, que passa recibos há oito anos, conta ao ECO que mantém “em mente que os ganhos ao longo do ano vão cobrir os gastos com as férias”.
Ao contrário de Ana e de Paulo, Sara reparte as suas férias em dois períodos mais distendidos (duas semanas cada) e aponta mesmo a liberdade de tirar mais dias de descanso do aqueles previstos na Lei Laboral para os trabalhadores por conta de outrem como uma vantagem deste regime. “Saio penalizada em rendimentos, sem dúvida, mas tenho a possibilidade de tirar mais dias de descanso que se trabalhasse por conta de outrem”, diz.
Sara sublinha que, apesar de não ter um limite máximo de dias de férias, tem sempre presente que, por cada dia passado fora do escritório, serão menos os euros a entrar na sua conta bancária. “Como sempre trabalhei neste regime, para mim já é um dado adquirido que, se não trabalhar, não ganho”, comenta, referindo ainda que não faz horas extra para compensar o impacto do descanso nos seus rendimentos.
“Procuro sempre agendar os períodos maiores com muita antecedência (vários meses), mas também quando surge uma situação de doença ou imprevisto que me obrigue a tirar o dia a seguir, tenho sempre a melhor compreensão e ajuda nos reagendamentos por parte das clínicas”, salienta.
Tento poupar alguma coisa durante o ano, depois aproveito o reembolso de IRS e o subsídio de férias do meu marido para podermos gozar as nossas férias.
Enquanto Sara agenda com antecedência o seu descanso, Patrícia S. não tem à escolha o período de férias. É que para esta trabalhadora independente, que presta serviços a uma escola e dá explicações particulares, o fim das aulas significa obrigatoriamente uma interrupção na sua atividade profissional. “Não tenho como contornar essa situação, pois assim que as aulas acabam — ou os exames — os meus serviços são dispensados, retomando depois com o início do período letivo”, afirma, em conversa com o ECO.
Em preparação para estes meses em que não há entrada de rendimentos, Patrícia vai poupando “alguma coisa durante o ano”, mas é sobretudo à boleia do reembolso do IRS e do subsídio de férias (direito a que os independentes também não têm acesso) do marido que se mantém financeiramente estável durante este período e goza o descanso.
“Para além de não receber nada em julho e em agosto, ainda tenho de pagar as contribuições para a Segurança Social”, frisa. Patrícia explica que há colegas que encerram mesmo a atividade na Segurança Social (interrompendo os descontos), mas que não o faz porque “sempre são dois meses a mais que entram para efeitos de contagem para a reforma”.
No início deste ano, o regime dos trabalhadores independente mudou. Em vez de uma única declaração anual de rendimentos a entregar à Segurança Social, são agora exigidas quatro trimestrais, possibilitando a aproximação dos rendimentos efetivos do rendimento relevante sobre a qual incide a taxa contributiva.
E nos casos em que não há rendimentos declarar, passou a ser cobrada uma contribuição mínima de 20 euros para que não hajam “interrupções na carreira contributiva”. Ou seja, o valor de contribuição a pagar nos meses em que não há rendimentos tende agora a ser inferior ao que se pagaria no regime anterior (o valor era fixado consoante média anual e não atendia a estas flutuações), mas ainda assim não há dispensa do pagamento, o que, dizem os independentes, pode ser pesado nestes períodos de férias.
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