Entre anulações e protestos, o que falhou na contagem dos votos dos emigrantes
Dúvidas sobre a validade de votos sem o cartão de cidadão levaram à anulação de 80% dos votos dos emigrantes na Europa. O processo eleitoral não terminou e votação vai ser repetida este fim de semana.
O processo de votação dos emigrantes portugueses já tem enfrentado algumas dificuldades, como boletins que não chegaram ou impedimentos em consulados, mas nada fazia adivinhar a confusão que se verificou nas eleições de 30 de janeiro. Discussões sobre a validade dos boletins por correspondência que não vieram acompanhados por cartões de identificação levaram à anulação de mais de 150 mil votos, mas um recurso ao Tribunal Constitucional acabou por ditar a repetição da eleição para os emigrantes do círculo da Europa, que acontece este fim de semana. Afinal, o que se passou?
Tudo começou no dia 18 de janeiro, numa reunião entre os delegados das listas de candidatura para a escolha dos membros das mesas das assembleias de recolha e contagem de votos dos eleitores residentes no estrangeiro. Onde se terá chegado a um entendimento para aceitar boletins sem cartão de cidadão, algo que o Tribunal Constitucional acabou por considerar “grosseiramente ilegal”.
“Antes de qualquer contagem, a mesa foi constituída e deliberou algumas questões que os membros consideravam pertinentes para a realização do ato eleitoral. Até porque a questão do documento de identificação — não necessariamente cartão do cidadão — coloca-se ao descarregarmos os votos e não ao contá-los, ou seja, antes de serem colocados na urna. A mesa decidiu por unanimidade (incluindo o membro indicado pelo PSD) considerar os votos sem documento de identificação, caso houvesse”, explica Guadalupe Amaro, membro de uma das mesas, em declarações ao ECO.
A responsável insiste que “todos os partidos que se reuniram para deliberar sobre o ato eleitoral decidiram por unanimidade considerar os votos sem fotocópia do documento de identificação válidos, inclusive o PSD”. Este é também o relato de Paulo Pisco, que salientou à Lusa que todos os partidos, incluindo o social-democrata, decidiram, em reunião com a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, que seriam validados todos os votos dos residentes no estrangeiro, mesmo sem cópia do cartão de cidadão.
O deputado do PSD, António Maló de Abreu, acabou por confirmar que, numa primeira reunião com os representantes dos partidos e da SGMAI, o PSD aceitou esta opção. Contudo, terá sido depois de consultar o gabinete jurídico do partido que concluiu que esta opção era ilegal. E terá informado os partidos e a SGMAI da posição na última reunião.
No entanto, quando arrancou a contagem dos votos, alguns responsáveis nas mesas de voto iniciaram o trabalho tendo em conta o acordo inicial, juntando votos válidos com outros que não vinham acompanhados de cópia da identificação do eleitor. No caso da mesa de Guadalupe Amaro, os membros só foram notificados “do protesto do PSD no segundo dia do ato eleitoral quando já todos os votos tinham sido descarregados e cerca de 2.000 de 2.250 votos tinham já sido contados, não tendo efeito na prática”. “Não seria possível termos considerado uma informação que desconhecíamos quando deliberámos sobre a questão”, acrescenta.
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Perante os protestos do PSD, estes votos acabaram mesmo por ser considerados nulos. Contudo, como tinham sido misturados com outros válidos, a mesa da assembleia de apuramento geral acabou mesmo por anular os resultados de dezenas de mesas. Não era possível distinguir os votos que foram colocados na urna.
Contar votos sem CC é legal?
Quanto à decisão tomada pelos partidos na reunião inicial, Guadalupe Amaro explica que esta teve por base as deliberações de 2019 da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que indicavam que “a presença duma fotocópia do documento identificação serviria para reforçar a confirmação da identidade”.
“Já em 2019 a questão se tinha colocado e os votos foram considerados válidos por ambas as Assembleias Gerais de Apuramento”, aponta. Este momento é também recordado ao ECO por Natércia Lopes, candidata do Livre pelo círculo da Europa: “Em 2019 a questão da inclusão (ou não) da fotocópia do cartão de cidadão com o boletim de voto gerou confusão nas mesas de voto, levando a um elevado número de votos nulos (24,75% no círculo da Europa)”. Como resultado dessa confusão, continua, sai a 15 de outubro de 2019 uma deliberação da CNE onde se lê que “não releva para o exercício do direito de voto a identificação através de documento apropriado, uma vez que ela é, em primeira mão, assegurada pela receção da correspondência eleitoral sob registo pelo destinatário ou pessoa próxima”.
Quanto à votação no início deste ano, foram considerados válidos os do círculo Fora da Europa e não os do círculo da Europa, ilustrando Guadalupe Amaro que “esta própria discrepância dos órgãos competentes e a nós superiores, e a imprecisão da CNE – a entidade responsável, que nenhuma consideração especial transmitiu sobre esta questão antes do ato eleitoral se dar (só ao fim do primeiro dia, após alguns protestos por parte do PSD) – é sinal de como os membros das mesas de voto, por mais corretos que tentem ser, são um reflexo duma conduta e organização repleta de falhas e incongruências”.
Outro exemplo quanto à interpretação é que a lei “requer também que a intenção de voto seja assinalada especificamente com uma cruz”, mas “a própria CNE transmite-nos em documentação oficial que outras formas (bola, asterisco, etc.) são válidas, desde que a intenção de voto seja clara e desde que o boletim de voto não corresponda ao que a lei considera um voto nulo”, acrescenta. “Sendo assim, a própria CNE delibera e informa contra a lei e em prol do bom senso”, reitera.
Contudo, a verdade é que o Tribunal Constitucional acabou mesmo por reiterar a ilegalidade da decisão. Na lei “são fixados determinados requisitos, designadamente, como diz o acórdão do Tribunal Constitucional, que tem que ser incluída cópia do CC ou do BI”, argumenta ao ECO o sócio da SRS Advogados, José Luís Moreira da Silva.
No acórdão, os juízes do Palácio Ratton avisam também que a Lei eleitoral da Assembleia da República “não atribui aos partidos políticos concorrentes à eleição, designadamente por via dos seus mandatários ou delegados, a faculdade de deliberar sobre os requisitos de validade dos votos”. O “acordo informal” foi então “grosseiramente ilegal”, consideram.
No total, foram considerados nulos 157.205 votos de emigrantes do círculo da Europa, o que representa cerca de 80% dos votos deste círculo. “Se os votos que estavam sob protesto, que não trouxeram fotocópia do cartão de cidadão, não tivessem entrado na urna e tivessem ficado à espera da decisão, isto não aconteceria. A responsabilidade não é de quem reclamou, é de quem pegou neles e os misturou com os outros”, declarou o líder do PSD, Rui Rio, quando questionado sobre o assunto.
Entretanto, o Chega, PAN, Livre, Volt Portugal e MAS anunciaram que iriam recorrer junto do Tribunal Constitucional. Em resposta ao Volt Portugal, cujo recurso foi considerado, o Tribunal Constitucional acabou por decidir que teria mesmo de ser realizado um novo ato eleitoral para os emigrantes do círculo da Europa.
“Está previsto na lei a possibilidade de repetição quando há situações como esta, de invalidade com relevância no resultado eleitoral”, explica José Luís Moreira da Silva. A necessidade de repetir as eleições pode ser “discutível”, já que “não é qualquer invalidade que obriga a repetição, apenas se se entender que pode alterar o resultado”, aponta.
Mas o Tribunal Constitucional “considerou que era tão elevado o número de votos inválidos, que poderia em abstrato alterar o resultado eleitoral”, indica José Luís Moreira da Silva. No entendimento do TC, a “lei não exige que no concreto possa haver influência”. Basta a “potencialidade de ter havido alteração do resultado”, dada a quantidade de votos.
Quanto à data para o novo ato, a lei diz que deve ser repetido na semana seguinte. No entanto, como é por correspondência, seria um problema porque “não há tempo útil para isso”. É que o boletim tem de ser enviado para casa de todos os emigrantes, para “votarem e porem no correio com tempo suficiente para chegar a Portugal”.
Assim, em vez de 27 de fevereiro, a CNE marcou o voto presencial para este fim de semana, nos dias 12 e 13 de março, sendo que os votos por correspondência podem ser recebidos até 23 de março. O apuramento dos votos será afixado dia 24 de março e no dia 25 deste mês os resultados serão finalmente publicados.
Os boletins de voto para o novo ato eleitoral foram novamente enviados. O Ministério da Administração Interna informou que a documentação “inclui um folheto com instruções sobre o processo de votação, o boletim de voto, um envelope verde e um envelope de retorno branco com indicação de porte pago”. A tutela sublinha que “só serão considerados válidos os votos que sejam acompanhados por cópia do Cartão de Cidadão ou Bilhete de Identidade, colocada fora do envelope verde, que contém apenas o boletim de voto, e dentro do envelope branco de retorno”.
“Convém referir que o voto é postal por defeito para a comunidade emigrante, o que significa que as únicas pessoas que vão poder votar de forma presencial são aquelas que se inscreveram para tal na ‘primeira volta’ da eleição. Ou seja, a vasta maioria da comunidade emigrante vota por correspondência, e essa modalidade mantém-se para esta repetição”, salienta Natércia Lopes, candidata do Livre ao círculo Europa.
PSD apresenta queixa-crime
Entretanto, o PSD decidiu também apresentar uma queixa-crime para responsabilizar quem cometeu um “crime” na contagem dos votos da emigração, nomeadamente quem misturou votos válidos e inválidos durante o apuramento dos resultados eleitorais. José Luís Moreira da Silva aponta que o Ministério Público (MP) “tem obrigação de abrir inquérito para verificar se houve ilícito criminal”.
A queixa será contra incertos, membros das mesas ou presidentes das mesas. O sócio da SRS Advogados explica ao ECO que, na definição da queixa, só não deverão ser “responsabilizados aqueles que tenham feito protesto por escrito na ata do apuramento da mesa que não concordavam com a deliberação”.
Depois é necessário averiguar se “podem eventualmente ter cometido um crime”, sendo que “cabe ao MP ver se no caso concreto se verificam condições: não basta que haja ilícito, que está verificado, é preciso que haja culpa do agente“. Desta forma, tal “pode ser discutível, porque com a deliberação dos representantes dos partidos, há confusão suficiente para dizerem que atuaram sem culpa por entenderem que era uma prática validada”.
Para o PSD, em causa estará a “prática de vários crimes eleitorais de falseamento da verdade”. Na Lei Eleitoral da Assembleia da República, o artigo que se debruça sobre este assunto (158º) indica que “o membro da mesa da assembleia ou secção de voto que dolosamente apuser ou consentir que se aponha nota de descarga em eleitor que não votou ou que não a apuser em eleitor que votou, que trocar na leitura dos boletins de voto a lista votada, que diminuir ou aditar votos a uma lista no apuramento ou que por qualquer modo falsear a verdade da eleição” será punido com prisão de seis meses a dois anos e multa de 100 a 500 euros, em valores aproximados de conversão do escudo.
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