Exclusivo Como Neeleman controlou a TAP com dinheiro da própria companhia

Análise legal sustenta que Neeleman garantiu 61% da TAP com dinheiro cedido pela Airbus a troco da compra de aviões e pago posteriormente pela própria companhia. Ministério Público abriu inquérito.

O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) abriu esta semana um inquérito ao negócio de compra de aviões feito entre a Airbus e David Neeleman e que permitiu ao empresário de nacionalidade americana e brasileira controlar a TAP. Uma análise legal a que ECO teve acesso, com data de 11 de agosto e entregue ao Governo, mostra como Neeleman terá sido financiado pela própria companhia, o que é proibido por lei, para controlar a TAP e atribuindo um benefício elevado ao fabricante de aeronaves europeu.

A privatização da TAP era uma das promessas do Governo de Passos Coelho, para que pudesse ser capitalizada por privados e não pelo Estado. A auscultação de interessados começou em janeiro de 2015, mas a entrada do novo acionista só seria concretizada dois dias depois do segundo Executivo, saído das legislativas de outubro de 2015, ter sido chumbado pela esquerda no Parlamento, ficando em gestão. Marcaria a concretização do plano que colocou a TAP a disponibilizar os fundos usados para a sua própria (e suposta) capitalização.

A estratégia de David Neeleman foi posta em marcha logo após a Atlantic Gateway, o consórcio criado por David Neeleman e Humberto Pedrosa, dono do Barraqueiro, ter sido selecionada como vencedora da privatização de 61% do capital da TAP, a 12 de junho de 2015. Segundo a cronologia que consta de uma análise legal preparada para a TAP em agosto de 2022 pela Serra Lopes, Cortes Martins & Associados, a DGN, uma sociedade liderada por David Neeleman, assinou quatro dias depois um memorando de entendimento com a Airbus, que tem como maiores acionistas individuais os Estados francês, alemão e espanhol, com 25,9% do capital. Para selar o compromisso, pagou quatro milhões de dólares em comissões ao fabricante de aeronaves.

O entendimento consistia em a TAP desistir do contrato com a Airbus para o leasing de 12 aviões A350 e a celebração de um novo para a aquisição de 53 aeronaves — 15 A320 Neo, 25 A321 Neo e 14 A330-900 Neo — com amplo benefício para a Airbus. De acordo com uma apresentação da Atlantic Gateway citada na nota legal, com data de 11 de agosto, a Airbus iria providenciar créditos de capital à DGN, no valor de 226,75 milhões de dólares, para serem canalizados para a TAP através da Atlantic Gateway. O exato valor da maior tranche de suprimentos que seriam mais tarde colocados na companhia aérea.

É a própria DGN que celebra, a 12 de novembro, o acordo para a compra dos 53 aviões à Airbus. No mesmo dia, o Conselho de Ministros aprova a privatização da TAP SGPS e 61% do capital é transmitido para a Atlantic Gateway. Humberto Pedrosa é eleito presidente do conselho de administração e David Neeleman como vogal. O CEO, Fernando Pinto, mantém-se. A estrutura é replicada na TAP SA, que detém a companhia aérea. Da parte do Governo, a privatização foi conduzida pelo secretário de Estado das Infraestruturas, Sérgio Monteiro, que já não estava no Executivo quando foi concluída.

A Atlantic Gateway fica obrigada a entregar prestações acessórias de 226,75 milhões de dólares (a mesma divisa do acordo entre a Airbus e a DGN) e 15 milhões de euros para capitalizar a transportadora aérea portuguesa, que na resolução de Conselho de Ministros realça que “a entrada imediata de fundos na companhia, constitui uma necessidade urgente, imperiosa e inadiável”. Os 15 milhões entram de imediato na TAP SGPS e mais 115 milhões de dólares no prazo de cinco dias.

A operação prossegue no dia 13 de novembro. O conselho fiscal da TAP dá um parecer favorável à compra dos 53 novos aviões e o conselho de administração aprova quer a compra dos Neo, quer a desistência dos 12 A350 XWB-900. Ainda no mesmo dia, a DGN, enquanto adquirente original, a TAP, enquanto novo comprador, e a Airbus celebram os novos contratos. A DGN fica liberta de quaisquer obrigações.

TAP ficou presa à Airbus, mas contrato pode ser ilegal

Os novos contratos, já com a TAP como comprador, trazem uma disposição que a amarra à compra das 53 aeronaves. A cláusula 2 prevê o pagamento pela companhia aérea portuguesa de novation fees, na prática uma penalidade que terá de ser paga caso a TAP não receba um ou mais aviões ou resolva o respetivo contrato quanto a um ou mais aviões. O valor total desta taxa é de 226.750.002 dólares, mais dois cêntimos do que o valor entregue pela Airbus à DGN de David Neeleman e posteriormente injetado na TAP SGPS.

A sociedade de advogados [hoje integrada na espanhola Cuatrecasas] entende que “o conjunto de operações e transações em causa poderá configurar, materialmente, várias irregularidades e ilegalidades suscetíveis e pôr em causa a validade dos contratos oportunamente celebrados”. Desde logo por configurarem uma situação de assistência financeira, que é proibida pelo artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais, sobre empréstimos e garantias para a aquisição de ações próprias.

"1 – Uma sociedade não pode conceder empréstimos ou por qualquer forma fornecer fundos ou prestar garantias para que um terceiro subscreva ou por outro meio adquira ações representativas do seu capital.
(…)
3 – Os contratos ou actos unilaterais da sociedade que violem o disposto no n.º 1 ou na parte final do n.º 2 são nulos.”

Artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais

A Serra Lopes, Cortes Martins & Associados (SLCM) sustenta que o contrato para a compra dos 53 aviões tem imbuído um negócio de assistência de financiamento. Seja porque as novation fees são mais que meras penalidades por incumprimento contratual, servindo antes “uma função garantística”, assegurando que a Airbus recebe, na íntegra, os fundos que disponibilizou. Seja através do alegado inflacionamento no preço de compra dos aviões, cujo pagamento permitirá à Airbus recuperar o valor inicial.

Por outro lado, as prestações acessórias da Atlantic Gateway, que tinham como objetivo reforçar o capital da TAP SGPS e a sua capacidade económico-financeira, na verdade não foram aportadas à sociedade como investimento estável, a longo prazo e com reembolso incerto (dependente do desempenho da companhia) mas como um investimento de reembolso garantido a curto-médio prazo. Ou seja, foi a própria TAP (e não a Atlantic Gateway ou a Airbus) que suportou o custo da capitalização desvirtuando o propósito da mesma, como observa a sociedade de advogados.

A SLCM conclui que existe uma violação do Artigo 322.º do CSC, donde as prestações acessórias da David Neeleman poderão ser consideradas nulas, bem como a própria privatização à Atlantic Gateway — o primeiro ponto do caderno de encargos prevê, justamente, o reforço do capital. O que pode contaminar também os contratos celebrados pela TAP com a Airbus.

Possível violação do direito da concorrência

A sociedade de advogados considera ainda que existem fortes indícios de potencial violação do direito da concorrência pela DGN e a Airbus, assumindo que esta tem uma posição dominante, tendo conseguido a desresponsabilização na entrega dos aviões A350, cessando um contrato que permitia à TAP comprar os aviões com um preço muito inferior ao do mercado. O mesmo acontece com a imposição de penalidades e a venda dos 53 aviões, alegadamente por um preço superior ao do mercado, que a companhia ainda está a pagar. De acordo com uma análise da consultora Airborne, a TAP terá sido prejudicada numa soma estimada em 444 milhões.

Todos estes indícios foram remetidos pelo Governo ao Ministério Público, como revelou o anterior ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, numa audição parlamentar. O antigo governante afirmou que a TAP “suspeitou que estaria a pagar mais pelos aviões do que os concorrentes”, tendo pedido uma auditoria. “Perante as dúvidas da auditoria, enviámos para o Ministério Público”, disse em outubro do ano passado.

O semanário Sol já tinha avançado em junho de 2019 que o empresário teria recebido dinheiro da Airbus pelo negócio dos aviões, que usou para entrar no capital da TAP, embora sem os detalhes agora revelados pelo ECO e sob investigação pelo Ministério Público. O empresário brasileiro abordou, na altura, o negócio numa entrevista à revista Visão. “O que eu fiz foi ir à Airbus e dizer que não queria os A350, porque não faziam falta à TAP. Mas queria os A330 e os A321 LR (Longo Alcance) porque são mais rentáveis. A TAP pode, com os A321 LR, voar para Toronto, Boston, Nova Iorque e até Chicago, com custos mais baixos”, afirmou David Neeleman. Uma estratégia que se mantém até hoje. “Eu não tirei nada da TAP. Estou a trazer este valor todo e não posso tirar um cêntimo enquanto a dívida bancária da TAP não estiver toda paga”, acrescentou.

Em outubro, o antigo acionista voltou a negar qualquer irregularidade: “Os novos aviões da TAP foram adquiridos a preço de mercado, como demonstram as várias avaliações independentes apresentadas e confirmadas pelo rigoroso e exaustivo escrutínio político e técnico, típicos e desejáveis quando se trata de um processo de privatização e de um processo de reorganização acionista com o Estado Português”, sublinha o ex-acionista.

David Neeleman acrescentou que toda a estrutura contratual relativa à compra dos novos aviões entre a Airbus, Atlantic Gateway e TAP, bem como todos os passos necessários, “foram dados a conhecer aos intervenientes e decisores relevantes, em momento anterior à privatização e no momento da reorganização acionista e foram, como tinha de ser, objeto de análise posterior pelo Tribunal de Contas”. Os juízes não apontaram irregularidades.

Cabe agora ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal apurar se a legislação foi ou não cumprida e se existem ilícitos criminais.

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