Guerra levou a divórcio com a Rússia e gás acelerou casamento da UE com os EUA
Em menos de um ano, a UE reduziu a dependência do gás russo e apostou na diversificação de fontes. EUA emergiram como novo principal fornecedor da UE e também como maior exportador de gás do mundo.
A guerra na Ucrânia veio espoletar uma reconfiguração estrutural no mercado energético, a nível europeu, sem precedentes, sendo este o principal motivo que levou ao “divórcio” entre a Rússia e a União Europeia (UE), parceiros comerciais de longas décadas. Em paralelo, foi o início de uma nova relação comercial com os Estados Unidos. No meio da discórdia, encontrava-se o gás, que viu os seus preços na Europa oscilar e atingir novos máximos, contribuindo para a pressão inflacionista que, em 2022, também não deu tréguas às economias mundiais.
“A forte subida do preço do gás teve um impacto significativo na economia europeia, atirando a inflação para níveis de dois dígitos [10,4% em dezembro de 2022]. Com a queda dos preços, a pressão inflacionista deverá diminuir, embora outras componentes, tais como os preços dos alimentos, continuem a aumentar”, aponta uma análise da Schroders, a que o Capital Verde teve acesso.
Volvido um ano, a União Europeia concretizou aquilo com que se comprometeu no verão do ano passado: reduzir a dependência energética da Rússia (diversificando as suas fontes dentro e fora da UE) e reforçar a aposta na transição energética. Ao mesmo tempo, o ocidente apertava o cerco em torno do Kremlin, com sanções económicas aos setores económicos mais rentáveis para o país, nomeadamente, o energético. Ao todo, foram aprovados dez pacotes de sanções contra a Rússia.
Se cerca de 50% do gás natural importado no bloco europeu, em 2021, tinha origem em Moscovo, em 2022 essa quota começou a diminuir rapidamente, ao passo que a presença de outros fornecedores viria a aumentar em paralelo. Desde junho de 2022 que a quota da Rússia nas importações de gás da UE é inferior a 20%. Em novembro, era de 12,9%, segundo os dados oficiais da Comissão Europeia.
“A oferta de gás russo em 2022 já vinha em tendência decrescente desde o verão de 2021, com as exportações a descerem abaixo dos mínimos registados nos seis anos anteriores. Isto indicia que a Rússia já se preparava para pressionar a União Europeia no inverno de 2021/2022, utilizando o gás como arma”, considera Gonçalo Aguiar, engenheiro eletrotécnico e especialista em energia ao Capital Verde.
E, apesar de o executivo comunitário ter na mira a aceleração da aposta nas energias e gases renováveis, em substituição do gás natural, através do REPowerEU, a verdade é que a Rússia encontrou neste combustível fóssil uma oportunidade de retaliação, criando constrangimentos a nível do fornecimento ao bloco europeu em primeiro lugar, para depois cortar mesmo o abastecimento através de gasodutos: o Yamal, na Polónia, em maio de 2022, e o Nord Stream 1, na Alemanha, em setembro.
A oferta de gás russo em 2022 já vinha em tendência decrescente desde o verão de 2021. Isto indicia que a Rússia já se preparava para pressionar a União Europeia no inverno de 2021/2022 utilizando o gás como arma
As disrupções, apesar de não terem passado despercebidas e terem obrigado a Comissão Europeia a adotar políticas de aprovisionamento para o inverno seguinte, aconteceram numa altura em que já se verificavam oscilações significativas no mercado de gás natural. Na plataforma holandesa TTF (Title Transfer Facility), a referência nos mercados europeus de gás natural, em reação à invasão da Ucrânia, no dia 24 de fevereiro de 2022, os preços do gás deram um salto para os 122 euros MWh. A tendência manteve-se ascendente tendo atingindo, a 26 de agosto, um pico superior a 330 euros MWh – “quase 20 vezes a média de 2018 e 2019”, estima Gonçalo Aguiar.
“A justificação para estes preços elevados deve-se à necessidade de mobilizar oferta mais cara, principalmente fornecida via navio, que tem tipicamente um custo superior ao da importação por gasoduto”, explica ainda.
Esta oferta começou a ter origem em países como o Qatar, a Noruega, o Reino Unido e até a Nigéria. Deste modo, a importação de gás para a UE via gás natural liquefeito (GNL) quase duplicou em 2022 face a 2021.
Em menos de um ano, EUA tornam-se no principal fornecedor
Mas o principal beneficiado foram os Estados Unidos, que se tornaram no maior exportador de gás natural do mundo em 2022, graças ao interesse da União Europeia que, em março, anunciou uma cooperação energética com os EUA face à escalada da guerra na Ucrânia.
“Os Estados Unidos esforçar-se-ão para assegurar volumes adicionais de GNL para o mercado da UE de pelo menos 15 metros cúbicos (bcm) em 2022, com aumentos previstos para o futuro”, lê-se no comunicado emitido por Bruxelas e Washington. A meta foi rapidamente ultrapassada.
“Os EUA passaram a ser um grande fornecedor de GNL para os países europeus, pois possuem infraestruturas de produção e de exportação”, aponta Rui Baptista, professor do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) ao ECO/Capital Verde. “O que se verificou [também], foi que rapidamente começaram a ser construídos sistemas de receção de GNL” um pouco por todo o bloco, acrescenta.
Exemplo disso foi a Alemanha que, em menos de um ano, inaugurou três terminais flutuantes de receção de navios metaneiros, contando com uma capacidade de receção anual de 14 mil milhões de bcm de GNL, “cerca de 2 vezes a capacidade da instalação da REN em Sines ou 16% do consumo anual alemão”, refere Gonçalo Aguiar.
A utilização da capacidade de receção de GNL a nível europeu aumentou para máximos históricos, tendo atingido 80% em abril de 2022, comparativamente ao máximo de 60% no ano anterior.
Dados oficiais sugerem que as importações de gás natural liquefeito norte-americano ascenderam a 4,8 bcm em dezembro de 2022, enquanto no conjunto de 2022 atingiram os 56 bcm, acima dos 22 bcm verificados em 2021, ultrapassando largamente o compromisso assumido na declaração UE-EUA, em março. No ano de 2022, a União Europeia tornou-se o destino de gás natural liquefeito mais importante dos EUA, uma vez que representava 52% do total das exportações de GNL dos EUA.
Na UE, as importações de GNL aumentaram 60% em 2022. O GNL pré-crise representava menos de 20% do consumo de gás da UE, mas representa agora mais de 30%. Feitas as contas, em menos de um ano os EUA tornaram-se no maior fornecedor de GNL à UE, com uma quota de cerca de 40%.
Além disso, verificou-se um acréscimo nos contratos de fornecimento de longo prazo entre energéticas europeias e produtores de GNL norte-americanos. Enquanto a norte-americana Sempra Infrastructure fechou contratos de fornecimento de gás a 15 anos com a alemã RWE e a francesa Engie, a NextDecade Corporation comprometeu-se a enviar gás para Portugal, através da Galp, durante duas décadas, e também para França, via Engie, por 15 anos. Fora do espaço Europeu, a Alemanha assinou contratos de fornecimento com produtores de gás do Qatar.
Preços aliviam mas continuam acima do pré-guerra
A diversificação de fornecimento de gás, as temperaturas amenas, as políticas de poupança no consumo e de armazenamento de gás nas reservas entre os 27 Estados-membros – que estão hoje muito mais elevadas do que há um ano atrás, situando-se, em finais de janeiro, nos 82% – e as intervenções da Comissão Europeia e dos governos nos mercados, são alguns dos fatores que levaram a uma estabilização do mercado do gás na Europa. Desde o início do ano que esta commodity tem estado a negociar abaixo dos 100 euros MWh e com o arranque de fevereiro o patamar desceu para a casa dos 50 euros MWh.
“O mercado estará em breve normalizado num “novo normal” entre fornecedores e compradores. A redução de preços verificada nas últimas semanas assim o parece indicar”, sugere Rui Baptista.
Mas poderá ser por pouco tempo. A falta de sinais de que a guerra está próxima do fim sugere que os exercícios de redução do consumo de gás em 15% para a produção de eletricidade (que estão previstos para terminar em finais de março) poderão ter que ser retomados pouco tempo depois de forma a evitar a volatilidade do mercado e minimizar o risco de escassez. Entre agosto e janeiro, a meta foi ultrapassada, tendo sido verificada uma redução de 19% no consumo de gás entre os 27 Estados-membros.
Analistas consultados pela Reuters sugerem mesmo que a prática poderá ter que vir a tornar-se recorrente até que o bloco europeu desenvolva uma alternativa mais permanente ao gás russo enviado através do Nord Stream 1, pela Alemanha, e do qual a União Europeia esteve dependente durante décadas.
“Desde a guerra fria que a Rússia era um fornecedor confiável de energia. Nunca duvidei que devia haver negociações. Não lamento as decisões. Na altura, era claro”, apontou Angela Merkel, antiga chanceler alemão durante uma visita a Lisboa.
Rússia contorna sanções e aumenta exportações de petróleo para a Ásia
As sanções da União Europeia contra o setor petrolífero russo aprofundaram as relações energéticas e comerciais do país de leste com a China e a Índia, à medida que os 27 Estados-membros procuram reduzir a dependência energética de Moscovo como resultado da guerra na Ucrânia.
Na sequência dos últimos dois regimes de sanções do bloco à Rússia, os fluxos de petróleo russo bruto para a Ásia começaram a aumentar. O primeiro entrou em vigor a 5 de dezembro de 2022 (dia em que foi aplicado um teto de 60 dólares por barril para o petróleo, impedido que este fosse exportado por via marítima se estivesse acima desse limite) e, mais tarde, a 5 de fevereiro (altura em que foi imposta uma limitação de 100 dólares por barril para outros produtos petrolíferos refinados, como o gasóleo).
De acordo com a Bloomberg, que cita os dados da Kpler, as exportações russas de petróleo para Pequim saltaram para níveis recorde, à medida que a China reabria a economia, com o levantamento da política de Covid-zero, em dezembro passado. As exportações atingiram 1,66 milhões de barris por dia em janeiro. Isto é superior ao recorde anterior, estabelecido em abril de 2020, quando a nação asiática estava a emergir das primeiras restrições iniciais contra o vírus que originou a pandemia. Na altura, os fluxos de crude russo situaram-se nos 1,52 milhões de barris por dia.
Apesar do aumento, os valores ainda se encontram longe daquela que outrora foi a realidade no bloco europeu. Citando os dados do Eurostat, em 2021, a União Europeia importava, todos os meses, em média, 9,5 milhões de toneladas de petróleo da Rússia, tendo esse valor descido apenas 21% para 7,5 milhões de toneladas no terceiro trimestre de 2022.
É desta forma que o Kremlin procura conseguir contornar os efeitos das sanções do Ocidente ao petróleo, uma das principais fontes de receita às contas públicas da Rússia e que previa roubar 160 milhões por dia a Moscovo, de acordo com as estimativas do Russia Fossil Tracker, desenvolvido pelo Centre for Research on Energy and Clean Air (CREA). A mesma organização internacional indica que, desde o início da guerra, a Rússia ganhou 296 mil milhões de euros em receitas provenientes das exportações de combustíveis fósseis, sendo que o petróleo representa 67% desse total (198 mil milhões de euros).
E, segundo o vice-primeiro ministro russo, apesar das sanções, os níveis de produção e exportação não foram afetados. “As exportações russas de petróleo têm-se mantido efetivamente inalteradas desde a introdução do limite do preço do petróleo“, cita a Bloomberg as declarações do analista da Kpler.
De acordo com Alexander Novak, em 2022, as exportações russas cresceram 7,6% para 242 milhões de toneladas, o equivalente a cerca de 4,9 milhões de barris por dia. Já a produção petrolífera terá aumentado 2% para 535,2 milhões de toneladas em 2022, o equivalente a cerca de 10,75 milhões de barris por dia.
E, mesmo sem a ajuda daquele que fora até então o principal cliente de petróleo russo, a perspetiva de Moscovo é a de continuar a crescer neste mercado, procurando novos clientes. “Hoje, continuamos a procurar e a encontrar novos mercados”, apontou Novak, adiantando que a Rússia planeia enviar, em 2023, 80% das suas exportações de petróleo bruto e 75% das suas exportações de produtos refinados para “países amigos”, isto é, nações que não tenham aplicado sanções à Rússia, tal como a China.
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