Medo, ansiedade e preocupação são os sentimentos mais comuns. Doentes já diagnosticados e idosos poderão ser o grupo mais afetado pelo isolamento, mas há estratégias para proteger a sua saúde mental.
Ficar em casa é uma das recomendações das autoridades de saúde para ajudar a combater a propagação do novo coronavírus. De acordo com a agência de notícias francesa France Press, há atualmente mais de mil milhões de pessoas em casa, em mais de 50 países. O afastamento social reduz o contacto humano e pode potenciar o surgimento de medo, ansiedade, depressão ou sinais de burnout, e potenciar outros problemas de saúde mental já existentes. Mas nem todos estes sentimentos são maus: tudo vai depender do contexto e das condições do isolamento físico de cada um.
À revista Pessoas, especialistas em saúde mental explicam que “cada caso é um caso”, mas há estratégias e hábitos que podem ajudá-lo a proteger a sua saúde mental durante o tempo de isolamento social.
Reagir é humano
“Face a um perigo, posso não ter a certeza se vou escapar ou não, mas sei qual é a ameaça concreta. Quando vivemos numa situação de risco é tudo baseado em probabilidades”, começa por dizer Teresa Espassandim, psicóloga vocacional e do desenvolvimento de carreira. “Em termos de agravamento para a saúde mental, isso tem consequências porque coloca as pessoas numa situação nova, desconhecida e incerta. A preocupação é algo normal, tal como é normal sentirmos medo, porque também nos prepara para a ação. De outra forma seríamos todos muito imprudentes”, sublinha.
Ainda assim, a especialista aponta: há pessoas mais ansiosas do que outras, como característica e não como reação a um acontecimento. “Uma situação de incerteza destas pode ampliar os níveis de ansiedade individuais“, garante a psicóloga.
Para Acácio Santos, psicólogo clínico e terapeuta familiar, o risco depende “muito das pessoas e das dinâmicas que estas famílias têm ou já tinham, mas também da capacidade que as pessoas têm de se adaptar a esta nova situação”. “Teoricamente, as pessoas que são suficientemente saudáveis têm capacidade para se adaptar a novas situações. Há pessoas que, do ponto de vista interno, são muito rígidas. E quebrar estas rotinas pode ser muito desorganizador para certos funcionamentos de personalidade”, lembra o especialista.
Haver um aumento de ansiedade nesta situação é natural. Agora, se essa ansiedade atingir determinados patamares, já é desorganizadora e pode eventualmente chegar a uma situação de psicopatologia em que a pessoa precisa de alguns cuidados.
Além disso, alerta o terapeuta, todas as características serão “adaptativas”. “Haver um aumento de ansiedade nesta situação é natural. Agora, se essa ansiedade atingir determinados patamares, já é desorganizadora e pode eventualmente chegar a uma situação de psicopatologia em que a pessoa precisa de alguns cuidados”, refere. Isso quer dizer que, se uma pessoa tem, por exemplo, um especial interesse ou valorização de limpezas, esse gosto é adaptativo. “Essas características até podem ser mais positivas do que aquela pessoa que não tem nenhum interesse nisso. O facto de a pessoa ser um bocadinho obsessiva, no sentido de que se preocupa em limpar, neste momento até é bom. Na psicopatologia, quando se fala em obsessivo-compulsivo, trata-se daquela pessoa que o faz de forma descontrolada e irracional”, exemplifica.
“Na população saudável, o isolamento poderá potenciar sentimentos de frustração, impotência, insegurança, receio de contágio ou de contagiar, aborrecimento, ansiedade ou irritabilidade. Se estes não forem prontamente geridos, poderão persistir e intensificar-se, gerando potenciais alterações no sono e alterações no humor mais duradouras, com prejuízo significativo para a pessoa”, alerta o médico psiquiatra José Ramos.
Distinguir o tipo de isolamento
Viver num apartamento, no centro de uma grande cidade, ou numa casa com quintal e fácil acesso ao exterior, vai influenciar a forma como se vive o isolamento, explicam os psicólogos. “As pessoas que vivem num prédio de 10 andares, em duas assoalhadas, têm um risco em termos de saúde mental um bocadinho mais agravado”, lembra Teresa Galrito, psicóloga clínica.
Felizmente a evidência diz-nos que a maior parte dos pacientes com problemas psiquiátricos pré-existentes irão conseguir adaptar-se às novas circunstâncias, sem descompensação da sua patologia de base.
Por isso, o isolamento poderá ter um grande impacto na população que já sofre de alguma doença mental. Para estes casos, deve continuar a haver acompanhamento médico atento, defendem os especialistas. “O isolamento não é igual para todos e será necessário adaptar soluções”, realça Acácio Santos. Por isso, na população com perturbações de ansiedade, “o medo associado às consequências de um contágio ou de poder infetar outros, a mudança radical de rotina, a sensação de falta de controlo sobre um agressor externo e a incerteza sobre a evolução da pandemia, poderá levar ao ressurgimento de crises de ansiedade”, exemplifica José Ramos.
“A psicopatologia está instalada quando estas características de personalidade –que cada um de nós tem, em diferentes níveis — nos impedem de levar a vida para a frente”, esclarece a psicóloga clínica Teresa Galrito, sobre o mesmo assunto. “O mais difícil de lidar neste momento é não termos um fim neste tempo. Isto é o que eventualmente causará mais perturbação nas pessoas”, acrescenta.
É imprescindível adotar medidas que promovam o bem-estar mental, que incluem manter um ritmo regular de sono, fazer refeições regulares e saudáveis, praticar atividade física, limitar o consumo de álcool, tabaco e outras substâncias, manter o contacto com familiares e amigos, praticar técnicas de relaxamento e participar em atividades prazerosas.
“A população com perturbação psiquiátrica é naturalmente mais vulnerável a estas circunstâncias, merecendo vigilância ativa por parte dos técnicos de saúde que seguem os pacientes. Felizmente a evidência diz-nos que a maior parte dos pacientes com problemas psiquiátricos pré-existentes irá conseguir adaptar-se às novas circunstâncias, sem descompensação da sua patologia de base, mas naturalmente alguns poderão sentir o ressurgimento de sintomas com intensidade suficiente para necessitar de cuidados especializados”, acredita José Ramos.
Gerir a família em casa e o “burnout familiar”
Para famílias com filhos e, em teletrabalho, surgem outros tipos de risco. “A duração de incapacidade de se voltar às rotinas antigas, que permitem um distanciamento físico entre cônjuges, dos filhos, da casa vai ser um fator de risco para aumentar esta síndrome de burnout familiar”, revela Marta Moreno, psicóloga clínica, especializada em psicoterapia e intervenção comunitária.
“Em idades abaixo dos 10 a 12 anos, as crianças têm uma janela muito curta de se autorregularem e entreterem sozinhas, portanto necessitam sempre de um dos pais, e por vezes dos dois, para criarem atividades e dinâmicas com eles”, explica a psicóloga.
“Intenção de escape e de fuga”, “fantasia de deixar as obrigações parentais e profissionais”, são alguns dos sintomas da pressão familiar associada à pressão laboral, exemplifica Marta Moreno. “Podemos começar a escalar aqui a nível de crises conjugais e na probabilidade de aumentar a taxa de divórcio no fim desta quarentena”, alerta.
“Trabalhar a partir de casa, naquilo que antes era até visto como uma estratégia possível para o equilíbrio entre a vida pessoal e familiar, traduziu-se aqui numa pressão imensa. Estas pessoas que foram trabalhar para casa estão com os seus filhos, com os seus companheiros e com pessoas que têm de cuidar, permanentemente, portanto não têm a mesma disponibilidade para trabalhar”, acrescenta a psicóloga Teresa Espassandim.
Manter rotinas, fazer exercício e comunicar
Os técnicos de saúde mental são perentórios. Manter rotinas, evitar o consumo de substâncias como o álcool e o tabaco, manter a prática de exercício físico e comunicar com os amigos e familiares são métodos eficazes para proteger a sua saúde mental durante a quarentena. “Quantos menos passos damos por dia? A atividade física ajuda a libertar endorfinas que induzem bem-estar, não só com efeitos na qualidade de sono, mas também como uma resposta anti-stress, para reduzir os níveis de cortisol“, explica Teresa Espassandim.
"O que nos protege de sermos contagiados não é o isolamento social, é o isolamento físico. O que queremos como medidas de prevenção, é que as pessoas se distanciem fisicamente, mas que se mantenham socialmente conectadas através de meios que não impliquem o contacto físico.”
“Precisamos de contacto social virtual, mas saudável. Falar com amigos e familiares sobre o seu dia-a-dia, as suas rotinas e não sobre as notícias trágicas. Precisamos que as pessoas falem entre si sobre as medidas saudáveis que estão a adotar, que se entreajudem, de acordo com as linhas orientadoras da DGS”, reforça Marta Moreno. “O que previne e o que nos protege de sermos contagiados não é o isolamento social, é o isolamento físico. A nível de saúde pública, o que queremos como medidas de prevenção é que as pessoas se distanciem fisicamente, mas que se mantenham socialmente conectadas através de meios que não impliquem o contacto físico“, frisa a psicóloga.
Teletrabalho também tem riscos de burnout
O presentismo e o burnout são problemas que também podem surgir para quem está em regime de teletrabalho. “As pessoas trabalham mais, com menos recursos, mais sozinhas, com menos rede e a ter de, cumulativamente, lidar com as outras tarefas das outras dimensões da sua vida. Isto não pode ser ignorado pelas entidades patronais. Não é igual“, realça Teresa Espassandim.
“Todas as organizações que têm lideranças com dificuldades na sua própria gestão de stress, contaminam a sua equipa de trabalho com a sua própria ansiedade, organizam o trabalho de formas pouco humanas e ignoram continuadamente sinais de alerta“, acrescenta a psicóloga.
Para apoiar as empresas, a Team24 lançou um serviço de assistência psicológica, através de consultas por videochamada. As empresas que quiserem disponibilizar este serviço aos colaboradores, têm um desconto de cinco euros nas consultas para empresas. Cada videoconsulta tem a duração de 45 minutos e cada consulta custará à empresa 25 euros.
As pessoas trabalham mais, com menos recursos, mais sozinhas, com menos rede e a ter de, cumulativamente, lidar com as outras tarefas das outras dimensões da sua vida. Isto não pode ser ignorado pelas entidades patronais. Não é igual.
“Para além das medidas de promoção do bem-estar mental que mencionei acima, as quais se aplicam também às pessoas em regime de teletrabalho, é adicionalmente crucial que respeitem o seu horário de trabalho e consigam, dentro do possível, separar as atividades quotidianas das atividades associadas ao seu emprego“, acrescenta José Ramos.
A tecnologia pode ajudar a combater a solidão
Na população mais sénior — que tem mais probabilidade de já sofrer de isolamento –, a situação poderá agravar-se neste contexto. De acordo com os especialistas e com a Ordem dos Psicólogos, é fundamental tentar manter o contacto, à distância, com os familiares mais séniores e reforçar as demonstrações de afeto. “Com a utilização das redes sociais, a questão do distanciamento social é muito atenuado, mas até certas gerações. São ferramentas que nem todas as pessoas utilizam”, alerta o terapeuta familiar Acácio Santos.
“Quando pensamos nos séniores, que estão mais isolados, poderão vivenciar mais o impacto físico do isolamento, porque já existia um isolamento prévio. Ajudarmos estas pessoas é algo crítico, porque também tem efeitos no seu sistema imunitário. Não existe esta dualidade entre o físico e o mental, há só uma saúde”, alerta Teresa Espassandim.
A startup portuense Didimo quer ajudar a criar soluções nesta área. A tecnológica que cria humanos digitais nasceu com o propósito de tornar as “comunicações digitais mais humanas”, começa por explicar Verónica Orvalho. Para ser mais uma alternativa ao isolamento devido à pandemia de Covid-19, a Didimo vai pela primeira vez disponibilizar serviços diretamente para o consumidor. Para isso, está a preparar a Didimo Xperience, uma aplicação que será gratuita, numa fase inicial, e que deverá ficar disponível para sistemas Android e iOS.
Os “humanos digitais” da Didimo podem ser uma alternativa para consultas à distância, para o e-learning e para o acompanhamento à população mais sénior. “Uma das coisas que estamos a pensar em facilitar é um sistema que permita as pessoas que já estejam reformadas, com um background na área de educação, poderem falar com as crianças, contar-lhes histórias. Para a área da saúde isto seria uma ferramenta fundamental”, explica Verónica Orvalho.
E depois do isolamento?
“Prever comportamentos é das coisas mais difíceis de fazer”, garante o psicólogo Acácio Santos. De acordo com a Ordem dos Psicólogos poderá gerar-se um “misto de emoções”, que poderão oscilar entre alívio e tristeza, explicam os especialistas. “As rotinas, os horários, as deslocações, o distanciamento da família, vão ter um sabor agridoce”, alerta Marta Moreno, e “o regresso ao trabalho poderá ser uma grande pressão”, acrescenta Teresa Espassandim.
“Aquilo que podemos desde já prever é que existirá sofrimento associado às perdas financeiras, ao aumento do desemprego, à provável crise económica, ao surgimento de novas formas de estigmatização e à dificuldade no regresso à rotina habitual. O facto de sabermos isto faz com que as estratégias para promover o nosso bem-estar mental tenham de ser implementadas precocemente, aumentando assim a capacidade de resiliência perante os obstáculos futuros“, remata o psiquiatra José Ramos.
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