Quantos milhares são precisos para incendiar o Parlamento? 423
A polémica estalou quando Mário Centeno revelou o salário anual do novo presidente da CGD: 423 mil euros. À esquerda e à direita, quase todos apontam o dedo a um valor "inaceitável".
A pergunta do deputado social-democrata Duarte Pacheco foi direita ao assunto que está a marcar a semana. “Estas individualidades já estão em funções há mais de um mês. Pode dar-nos conhecimento de quais os salários que já receberam?”
As “individualidades”, claro, são os membros do conselho de administração da Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Como se antecipasse o efeito que teria a informação que estava prestes a revelar, a resposta de Mário Centeno, que estava a ser ouvido numa audição da Comissão de Orçamento e Finanças, no Parlamento, demorou dois minutos e meio.
“O presidente do conselho de administração da Caixa vai…”
Falso alarme.
“Foi, aliás, definido pelo acionista Estado, como política de remuneração da CGD, que esses salários correspondessem à mediana do setor em Portugal. Ou seja, que estivessem, e agora passamos para a estatística, enquadrados no contexto dos salários do setor”.
Já chegámos?
“Eu disse aqui, em julho, ou junho, não me lembro, que, nesta dimensão, os salários da administração da CGD não iriam nem influenciar o mercado no sentido de o inflacionar, nem estar fora do mercado, porque achámos que eles deveriam estar completamente alinhados com aquilo que é a mediana, portanto, o salário que se paga neste setor em Portugal”.
E agora?
“E, assim, o presidente do conselho de administração vai ter um salário que é o equivalente ao vice-presidente da mediana dos salários na banca portuguesa, que é de 423 mil euros anuais”. Agora sim: “Os vogais executivos vão ter um salário que também corresponde à mediana do salário do setor, que são 337 mil euros. Os não executivos vão ter um salário igual a 49 mil euros anuais, que também corresponde, aliás, é um bocadinho mais baixo do que essa mediana”.
E, para o caso de terem sobrado dúvidas: “Todos estes salários correspondem àquilo que são as referências — vou usar outra vez a palavra: mediana — no setor bancário em Portugal. Foi o compromisso que assumimos, foi muito transparente e muito claro desde o princípio, é exatamente isso que está na política de remunerações que foi pelo acionista proposta para a CGD”.
A direita dividiu-se…
Não foi preciso esperar que a notícia chegasse aos jornais e televisões para estalar a polémica. António Leitão Amaro, que também estava presente na audição que decorreu na terça-feira, foi o primeiro a ter a palavra depois das declarações de Centeno.
O deputado do PSD usou o tempo de antena para pedir ao ministro das Finanças que disponibilizasse “os cálculos da mediana entre os bancos que tiveram de fazer ajustamento por receber dinheiro dos contribuintes“. Porque, sublinhou, “o que interessa comparar é aqueles que receberam dinheiro dos contribuintes”, até porque “o Governo anterior impôs que os bancos privados, ao receberem dinheiro, tinham de cortar os salários em 50% e proibir as remunerações variáveis”.
Nada que a restante direita tenha contestado. O problema surgiu quando, já na quarta-feira, durante a votação de uma proposta do PCP para limitar as remunerações dos gestores públicos e privados a 90% do salário do Presidente da República, o PSD votou ao lado do PS para chumbar esta solução.
Sobre esta posição, Duarte Pacheco classificou de “inaceitável” (o mesmo termo usado por Catarina Martins, mas já lá vamos) o valor pago aos administradores da CGD, mas justificou que não se deve enveredar por uma “demagogia fácil“. E adiantou que os sociais-democratas vão propor a sua própria alteração ao Estatuto do Gestor Público.
Quem não gostou desta justificação da direita foi… a direita. “Seja o PCP e o BE a arranjarem desculpas para fazerem o favor ao PS, seja o PSD a votar contra [a proposta do PCP], todos permitiram que os gestores da Caixa continuem sem limite ao salário e sem regras”, criticou Cecília Meireles, vice-presidente do CDS.
… E a esquerda também
Voltando à audição de terça-feira. Se o socialista João Galamba considerou “coerentes” as posições do PCP e do Bloco de Esquerda, quando pedem limites aos salários dos gestores (e ainda que o PS defenda outro tipo de mecanismos para combater as desigualdades salariais), Mariana Mortágua não foi branda com o Governo.
“Parece-me completamente compreensível o espanto que causa o salário divulgado do presidente do conselho de administração da CGD. É quase meio milhão de euros por ano. O espanto compreende-se. É muito dinheiro quando comparado com os salários médios em Portugal, com os salários mínimos em Portugal, com as dificuldades que o país atravessa”, começou por dizer, para, logo de seguida, reforçar: “Não é aceitável que haja esta disparidade de salários e que o presidente de administração de um banco ganhe quase meio milhão de euros por ano”.
Se Mariana Mortágua não tivesse sido suficientemente clara, Catarina Martins deixou o aviso sem margem para dúvidas: “O salário milionário dos administradores é pura e simplesmente inaceitável. Não vamos discutir, como a direita, se deve ser quatro ou cinco vezes o salário do primeiro-ministro. A Assembleia da República será confrontada novamente com esse tema, porque, para o Bloco, este não é um assunto encerrado“.
Marcelo não faltou à festa. Mas Costa não apareceu
O assunto também não passou ao lado do Presidente da República. “Se há fundos públicos, não é possível nem desejável pagar o que se pagaria se fosse um banco privado sem fundos públicos“, disse Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas, em Braga.
O chefe de Estado remeteu ainda para a posição que tinha assumido em junho, quando promulgou um diploma sobre o Estatuto do Gestor Público. Na altura, disse que o Governo deve “estar muito atento” ao valor que fosse fixado e obrigar a que esses valores fossem acompanhados de resultados.
“Devia atender ao resultado da gestão, para não ficar a sensação de que havia valores muito elevados não acompanhados de resultados positivos”, salientou.
António Costa optou por não se pronunciar relativamente às críticas à sua esquerda. O primeiro-ministro não respondeu ao aviso de Catarina Martins e, à saída do Parlamento, conversou durante alguns minutos com um deputado bloquista.
Contas feitas
Vamos a contas. O conselho de administração da CGD é composto por onze membros:
- um presidente: António Domingues,
- um vice-presidente não executivo: Rui Vilar,
- seis administradores executivos: Emídio da Costa Pinheiro, Henrique Menezes, João Paulo Martins, Paulo Rodrigues da Silva, Pedro Durão Leitão e Tiago Oliveira Marques e
- três administradores não executivos: Angel Corcóstegui Guraya, Herbert Walter e Pedro Norton de Matos.
Assumindo os valores revelados na terça-feira pelo ministro das Finanças — 423 mil euros anuais para o presidente, 337 mil euros para os executivos e 49 mil euros para os não executivos — o conselho de administração da CGD vai custar ao Estado mais de 2,6 milhões de euros por ano.
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