O frente a frente de António Costa e Mário Nogueira em cinco rondas
O primeiro-ministro e o principal dirigente sindical dos professores embateram, sem guião, sobre o que divide o Governo e os sindicatos: leia o relato do combate frase a frase.
Mário Nogueira e António Costa têm muito a dizer sobre o desacordo que já dura desde a antecipação do Orçamento para 2018 relativamente à contabilização das carreiras dos professores. Esta terça-feira, num momento inusitado, o dirigente sindical da Fenprof e o primeiro-ministro confrontaram-se em frente das câmaras, incluindo as da SIC Notícias, cujas imagens foram usadas como base para esta transcrição.
Durante largos minutos, os dois discutiram as minúcias do diferendo entre representantes dos professores e Executivo, que se centra num tema: os professores querem que sejam contados todos os anos em que as suas carreiras estiveram congeladas — nove anos, quatro meses e dois dias — para efeitos de progressão nas carreiras, enquanto o Governo quer contabilizar dois anos, nove meses e 18 dias, que considera ser uma equivalência à progressão que vai acontecer nas carreiras gerais, onde o avançar entre escalões é mais lento. Releia, em cinco rondas, o combate que pôs frente a frente o chefe de Governo e Mário Nogueira, às vezes bem-humorados, às vezes com um tom mais crispado, até ao knock-out.
Ronda 1: Nogueira e legislar “para daqui a dois governos”
[A conversa começa a ser transmitida no momento em que António Costa e Mário Nogueira se confrontam sobre a reunião da última sexta-feira, que terminou sem acordo e com a decisão unilateral do Governo de implementar a sua proposta para a recuperação de quase três anos do tempo de serviço prestado durante o congelamento.]
António Costa: “Mesmo sem acordo, vamos pôr em letra de lei, e na vida das pessoas, aquilo que foi a nossa proposta.”
Mário Nogueira: “Vamos [vão] pôr, para outros fazerem.”
António Costa: “Não, é já para janeiro de 2019.”
Mário Nogueira: “Então não leu o comunicado.”
António Costa: “Leu o decreto-lei?” [O decreto-lei ainda não está disponível para consulta.]
Mário Nogueira: “Não, li o comunicado. [O comunicado sobre este decreto-lei foi emitido pelo Ministério das Finanças no final da reunião de sexta-feira entre os sindicatos e o Governo que terminou sem acordo.] Os 46 mil professores que irão beneficiar do descongelamento tal como os outros funcionários, nos termos em que o comunicado esclarece que vai acontecer, nem vão recuperar um dia nesta legislatura, nem na próxima… Estão a atirar isto para daqui a dois Governos.”
António Costa: “Mas o senhor anda a dizer que poderia durar vários anos.”
Mário Nogueira: “Sim, desde que começasse quando? Em 2019!”
António Costa: “Começou a 1 de janeiro de 2018 com o descongelamento.”
Mário Nogueira: “Sabe que não estamos a falar disso.”
António Costa: “Não vale a pena estarmos aqui com habilidades. Temos o projeto de lei, vamos ouvi-los, e se requererem as negociações, vamos fazê-las e vamos ver.”
Mário Nogueira: “Não é justo que as pessoas tenham dado e continuem a dar o melhor de si, e que um Governo em que muitos professores depositaram, e alguns depositarão ainda, grandes expectativas, seja o primeiro a desvalorizar esses anos de trabalho. Seis anos e meio: apagam-nos.”
Ronda 2: Costa e “o Governo de toda a gente”
António Costa: “Eu vou-lhe dizer o que não é justo.”
Mário Nogueira: “Diga.”
António Costa: “Não é justo não considerar aquilo que é a perceção de cada um dos direitos que tem. Mas também não é justo dizer, em relação ao Governo que descongelou o que estava congelado, que não tivemos consideração [pelos trabalhadores]. Se não [os] tivéssemos em consideração, o congelamento tinha-se mantido. Este Governo não congelou, descongelou. E esse é um passo muito importante.”
Mário Nogueira: “Claro.”
António Costa: “Depois demos um outro passo [perante aquela] que era a aspiração legítima das pessoas, dos professores como de todos os outros, de recuperar o tempo que foi perdido.”
Mário Nogueira: “O tempo de trabalho.”
António Costa: “E tendo de o fazer, porque não somos só o Governo dos professores mas também dos médicos, das forças de segurança, do país em geral, dos enfermeiros…”
Mário Nogueira: “Claro, claro, claro, dos desempregados, de toda a gente.”
António Costa: “… temos de o fazer de uma forma equitativa para toda a gente.”
Ronda 3: Nogueira e as Finanças “onde está Deus”
Mário Nogueira: “Mas não fazem, porque aos outros, que perderam os últimos sete anos, recuperam os sete. Os senhores recuperam 70% do módulo padrão do escalão, que é precisamente o que eles perderam: 70% do escalão. Os professores perderam 135% do módulo padrão do escalão, mais de dois escalões.”
António Costa: “Os dois anos, nove meses e 18 dias não foi um número que caiu do céu. É exatamente o mesmo módulo padrão dos 70% relativamente aos sete anos…”
Mário Nogueira: “Não caiu do céu mas caiu das Finanças porque inventaram ali… Não caiu do céu mas caiu das Finanças, onde às vezes dá a ideia que está Deus.”
António Costa: “Se fizer as contas, é exatamente os 70%…”
Mário Nogueira: “…do módulo padrão do escalão, que é o que eles perderam, mas os professores não perderam só isso.”
António Costa: “A proposta que o Governo fez foi aplicar aos professores exatamente a mesma regra que foi aplicada aos outros…”
Mário Nogueira: “Depois de essas pessoas não terem tido essa mesma regra na perda. Eu acho que o que fizeram aos outros está bem…”
António Costa: “Doutor Mário Nogueira, como sabe, durante sete anos consecutivos, e se quiser mais dois…”
Mário Nogueira: “Mais dois, e o resto, sim.”
António Costa: “… Mas, pelo menos, durante estes sete anos consecutivos, a norma do orçamento foi sempre igual. E relativamente às carreiras como a dos professores, a norma era diferente do que em relação às outras. [Norma] que o tribunal constitucional nunca declarou inconstitucional. E, portanto, aquilo que foi o nosso compromisso, se for ver ao programa de Governo é o que lá está, era o descongelamento das carreiras e as carreiras foram todas descongeladas.”
Mário Nogueira: “Mas depois a maioria relativa obrigou a outros compromissos, e esses não os cumprem.”
António Costa: “Desculpe lá mas também não é verdade.”
Mário Nogueira: “Nós reunimos com todos [os partidos no acordo de incidência parlamentar], todos nos dizem isto, e não é verdade? Estão todos enganados?”
António Costa: “O que diz a norma, que vou citar de cor porque não a tenho aqui…”
Mário Nogueira: “Eu conheço-a.”
António Costa: “… Considera-se que está em processo negocial a expressão financeira do tempo congelado, devendo ser considerado o modo e o prazo, de acordo com as condições de sustentabilidade financeira do país.”
Mário Nogueira: “Exatamente, e é por isso que aceitámos o faseamento.”
Ronda 4: Compromisso não é acordo nem vice-versa
António Costa: “E, na declaração de compromisso que assinámos com os sindicatos, como se recorda, há uma declaração de compromisso.”
Mário Nogueira: “Claro que sei, assinei-a.”
António Costa: “Foi uma negociação toda a noite, e eu até me lembro de o ver a si à saída…”
Mário Nogueira: “… A dizer que se lá estivesse o tempo eu dava o meu acordo.”
António Costa: [imita microfone com a mão para mostrar que cita a pergunta de um jornalista] “Então isto significa que o Governo aceitou o tempo todo? E [o senhor] disse: Claro que não, caso contrário seria um acordo [em vez de uma declaração de compromisso]. Portanto não é um acordo. E o que se dizia na declaração de compromisso foi que íamos negociar o prazo, o modo e o calendário.”
Mário Nogueira: “Diz lá que há três variáveis. O tempo [que seria contabilizado], o modo [através do qual seria contabilizado] e o prazo [para aplicar esta contabilização]. E na alínea seguinte diz quais são de negociação: o modo, e o prazo. Até lhe chamou o calendário, mas não importa.”
António Costa: “Nós temos estado a negociar o modo. Como o tempo conta, por exemplo, para efeitos da reforma.”
Mário Nogueira: [a rir] “Também era melhor, as pessoas pagaram [à Segurança Social]. O problema é que as pessoas também pagaram para o fisco e não lhes conta para a carreira.”
António Costa: “Vamos lá ver o seguinte: cumprimos o que estava no programa do Governo, cumprimos o processo negocial e apresentámos as propostas. Aguardámos as contrapropostas.”
Mário Nogueira: “E nós entregámos.”
António Costa: “Não.”
Mário Nogueira: “Nós entregámos.”
António Costa: “A contraproposta foi nove anos quatro meses e dois dias…”
Mário Nogueira: “Sim, mas entregámos outras coisas, ó senhor primeiro-ministro. Em nome da sustentabilidade, que falou, e bem, e que está no nosso compromisso, nós admitimos fasear até 2023 e até negociar outro prazo se fosse preciso. [a rir] Não eram os 20 anos que falou no outro dia mas aceitámos isso. Aceitámos que pudesse ter impacto na aposentação, sendo uma forma diferente… Aceitámos que na carreira pudesse, em vez de ser em tempo, ter impacto no acesso a certos escalões… a única coisa para que não estivemos disponíveis foi para o que a lei não diz.”
António Costa: “Mas aquilo para que nós não podemos estar disponíveis… Gostaríamos muito de poder estar disponíveis e não ter aqui a manifestação…”
Mário Nogueira: “Isto não é uma manifestação, senhor primeiro-ministro.”
Professora entre os dois: “É um encontro”.
Podem fazer mais. Podem ser justos para os professores, e para os outros trabalhadores que estão em situação igual.
António Costa: “Pronto, podíamos estar aqui a falar de outras coisas. Há dois limites que nós temos. O primeiro é que não podemos fazer, relativamente a uma carreira, diferente do que se faz noutras. E, em segundo lugar, não podemos fazer mais do que o que tem a ver com a sustentabilidade.”
Mário Nogueira: “É o prazo e modo. Podem fazer mais. Podem ser justos para os professores, e para os outros trabalhadores que estão em situação igual.”
António Costa: “A justiça foi aquilo que lhe propusemos, se tiver contrapropostas estamos disponíveis para ouvir.”
Mário Nogueira: “É uma justiça curta, senhor primeiro-ministro.”
António Costa: “É sempre curta.”
Mário Nogueira: “Não, não é sempre.”
António Costa: “É sempre curta para quem não obtém tudo aquilo que sabe que tem direito.”
Mário Nogueira: “É aquilo para que as pessoas trabalharam, é o trabalho das pessoas.”
António Costa: “O passo decisivo e importante que demos e valorizamos foi que uma proposta negocial foi recusada, podíamos dizer que não houve acordo…”
Mário Nogueira: “Não foi recusada. O Governo pediu a nossa opinião sobre a lei e não a quis… Mas essa última negociação para quê? Já tinham decidido.”
António Costa: “Não tínhamos decidido.”
Mário Nogueira: “Segundo nós ouvimos no rádio, já havia um comunicado, já havia uma decisão do Governo.”
António Costa: “Em função da vossa resposta.”
Mário Nogueira: “Ainda por cima quem descongela agora… daqui a duas legislaturas…”
António Costa: “Requeira a negociação.”
"Vai ver que o decreto-lei diz mais do que pensa.”
Mário Nogueira: “Vou requerer.”
António Costa: “Vai ver que o decreto-lei diz mais do que pensa.”
Mário Nogueira: “E vou-lhe dizer outra coisa, o que dizem os professores, o que vamos dizer ao Governo?”
Pequeno coro de professores ao redor: “Nove anos, quatro meses e dois dias.”
António Costa: [a rir] “Pronto, se você está irredutível, o que quer?”
Mário Nogueira: “Não é irredutível, é o que diz na lei.”
[António Costa cumprimenta uma senhora, que lhe diz:] “Pense bem em nós, senhor primeiro-ministro.”
Mário Nogueira: “Seja justo.”
Knock-out mútuo
[Quando António Costa se afasta, os jornalistas seguem-no com as câmaras e, antes de começar a responder o primeiro-ministro, volta a chamar para junto a si o dirigente sindical, e ambos se mostram bem-humorados.]
Mário Nogueira: “Se há acordo? Com um Governo que não conta o tempo completo de trabalho dos professores e que toma uma decisão [unilateral], — vamos ver o que me surpreende [no decreto-lei], — e que nem sequer recupera um dia durante esta legislatura…”
António Costa: “Agora a minha parte, com um dirigente sindical que é intransigente relativamente à proposta que o Governo apresentou…”
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