Contratos fantasma, ficheiros secretos e falta de memória marcam estreia da comissão de inquérito à CGD
Foram muitas as explicações, as dúvidas e peripécias durante as quase 15 horas de audições que marcaram o arranque dos trabalhos da comissão de inquérito à recapitalização da CGD.
Afinal, a Caixa Geral de Depósitos (CGD) tem ou não todos os contratos dos grandes créditos que concedeu? E por que razão Carlos Costa não quer partilhar os “ficheiros secretos” sobre a sua atuação no caso do BES? Vítor Constâncio, o ex-governador “genérico” do Banco de Portugal, disse não ter “memória” dos alertas sobre operações irregulares no banco público há mais de 15 anos. Foram muitas as explicações, as dúvidas e peripécias durante as quase 15 horas de audições que marcaram o arranque dos trabalhos da II comissão de inquérito à recapitalização da CGD e aos atos de gestão. Nas próximas semanas há mais.
EY e os contratos fantasma
Primeira audição: a EY, responsável pela auditoria independente aos atos de gestão da CGD entre 2000 e 2015. Entre as conclusões principais a que a auditora chegou estão as perdas de 1,2 mil milhões de euros que o banco público registou naquele período relativamente aos 25 maiores créditos. Aliás, foi esta auditoria que deu origem à II comissão de inquérito à recapitalização da CGD e aos atos de gestão.
Passava pouco depois das 15h00 de terça-feira quando Florbela Lima, partner da EY e principal autora do relatório da auditoria, começou a falar. Deixou logo um aviso que seria premonitório: “O nosso trabalho não emitiu juízos de valor sobre a qualidade das decisões tomadas“, explicando de seguida que abordou antes o processo de decisão tendo em conta as regras e as normas internas em vigor na CGD em cada período.
Florbela Lima haveria de socorrer-se deste argumento ao longo das quatro horas da audição para evitar qualificar muitas das operações ruinosas para o banco público. A uma provocação de um deputado, a especialista responsável pelo relatório final disse: “Há decisões que não foram justificadas, sim. Se houve créditos de favor? É o senhor deputado que tira essa conclusão, não somos nós. Não analisámos a qualidade das decisões“.
Há decisões que não foram justificadas, sim. Se houve créditos de favor? É o senhor deputado que tira essa conclusão, não somos nós. Não analisámos a qualidade das decisões.
Também disse por várias vezes que não se pode estabelecer uma relação direta entre o facto de a CGD não ter cumprido as regras do crédito e os grandes defaults. Os deputados tentaram muitas vezes extrair de Florbela Lima um dado que a própria auditoria permitiu concluir: em que período se concentraram as maiores perdas para o banco e houve mais atropelos às regras internas de concessão de crédito. “Durante todos os anos verificámos este tipo de situações” em que o normativo não foi cumprido, esclareceu a responsável.
Mas a audição acabou por ficar marcada pelo tema dos contratos em falta relativamente a alguns dos maiores créditos da CGD. Inicialmente, Florbela Lima alertou que “há informação que não foi localizada” e que a auditoria se cingiu à informação que a EY teve acesso, um apontamento que fez alguns deputados franzir o sobrolho. O assunto foi explorado até a auditora admitir que não lhe foi disponibilizada documentação sobre quatro dos 25 financiamentos mais problemáticos. Recordamos uma parte do diálogo entre Florbela Lima e a deputada do CDS Cecília Meireles sobre este tema:
– “Eu não estou a dizer que não existe contrato, estou a dizer que o contrato não nos foi disponibilizado”, explicou Florbela Lima.
– “O facto de não ter sido disponibilizado é um indício muito forte de que não há sequer contrato. Como é que sem suporte documental a CGD pode recuperar este crédito?”, questionou Cecília Meireles.
– “É um facto”, reconheceu a partner da EY sobre o facto de, não havendo documentos que comprovem a dívida, torna-se difícil para o banco bater à porta do devedor para a reclamar.
No dia seguinte, logo pela manhã, o banco afastava qualquer dúvida:
A CGD confirma a formalização contratual respeitante aos quatro créditos mencionados como parte do top 25 do relatório de auditoria da EY. A CGD esclarece ainda que das 60 operações referidas na audição, apenas 24 tinham exposição à data de dezembro de 2015, confirmando a CGD que tem os documentos contratuais que identificam e legitimam integralmente a sua posição e direitos.
Carlos Costa e a auditoria de 2011
Foi a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua quem confrontou Carlos Costa com o tema: o Banco de Portugal já sabia em 2011 quais eram os grandes créditos problemáticos para a CGD e isso não fez travar nomeações de antigos administradores como fez a auditoria da EY. Disse a deputada:
– Eu também achava que o relatório da EY tinha sido decisivo para estas avaliações [de nomes para cargos], até que vou procurar nos documentos enviados ao Parlamento e encontro uma auditoria do Banco de Portugal de 2011, afirmou Mariana Mortágua, citando depois várias passagens da auditoria de 2011, onde revelou ter encontrado informação “sobre os contratos mais precisa e minuciosa” do que na EY relativamente aos grandes devedores do banco do Estado, como Joe Berardo, a Investifino, o Grupo Espírito Santo ou o grupo Goes Ferreira.
Após várias críticas da deputada bloquista sobre a inação do supervisor face ao que já sabia há oito anos, Carlos Costa respondeu com ironia:
– “Felizmente, a deputada está a dar ao Banco de Portugal o mérito de ter feito a auditoria e de ter detetado as situações”, disse o governador, arrancando sorrisos amarelos aos deputados.
Não foi o único momento em que a resposta de Carlos Costa soltou risos agridoces na comissão. Isso aconteceu quando foi confrontado sobre o seu envolvimento nos grandes créditos problemáticos para a CGD, e o governador disse: “Não tenho nem nos meus registos nem na minha memória” ter participado nas reuniões que decidiram estas operações. Vale a pena ler o artigo do ECO “As comissões de inquérito à banca provocam amnésia? ‘Não me lembro’“ para perceber o motivo pelo qual os deputados sorriram com um amargo de boca com a intervenção do governador.
Outros temas levantados na audição que durou cinco horas: o monte comprado a Armando Vara, que Carlos Costa disse ter sido adquirido por “procuração” dado que não se encontrava em Lisboa na altura; o momento do pedido de escusa que afinal não foi em novembro do ano passado mas logo no início de 2017, “sempre que a questão se colocou”. Sobre a escusa, o governador rejeitou que isso signifique que esteja implicado pela auditoria. Afirmou que se afastou das decisões do supervisor para a “reforçar a qualidade da decisão” em termos da perceção pública.
O último braço-de-ferro com o governador ficou marcado por aquilo que os deputados chamaram de “ficheiros secretos”, lembrando a série televisiva protagonizada pela dupla de agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully. Quais eram estes “x-files”? O relatório “Costa Pinto”, um extenso documento elaborado pelo então presidente da comissão de auditoria João Costa Pinto (com a ajuda da consultora BCG) sobre a atuação do Banco de Portugal no caso do BES e que Carlos Costa se recusa a enviar ao Parlamento.
“É um documento interno” para “reflexão do governador” e que está protegido “pelas regras do sistema dos bancos centrais” que visam “salvaguardar a independência da supervisão”, justificou Carlos Costa, quando disse no Parlamento que não vai mesmo enviar o documento que terá apontado falhas à atuação do supervisor em relação ao BES.
O governador “genérico” do Banco de Portugal
Vítor Constâncio mal tinha acabado de se sentar e já avisava os deputados: “Não tenho muito mais a acrescentar depois do que disse nas respostas por escrito que dei na primeira comissão”. Ainda assim, a audição com o antigo governador do Banco de Portugal (2000-2010) durou mais de cinco horas e acabou por ser a mais longa das três que se realizaram na última semana. É um velho conhecido das lides parlamentares, não só porque Vítor Constâncio foi político (liderou o PS entre 1986-1989), como também já tinha sido chamado anteriormente ao Parlamento para prestar declarações sobre a atuação do Banco de Portugal em casos como o BPN e o BES. Aliás, já lá tinha ido em 2012 por causa da nacionalização do BPN.
Ao contrário de Carlos Costa, que tentou proteger-se de todas as críticas e acusações, Vítor Constâncio chegou à comissão como “alguém que já passou à história”. Talvez por isso foi-lhe mais fácil reconhecer falhas no seu mandato:
– “Não sinto que tudo correu mal, mas decididamente que houve falhas em relação a alguns aspetos da supervisão, mas não foi só em Portugal mas em todos os países europeus”, disse.
Os deputados quiseram colocá-lo na pele de co-responsável das perdas da CGD, um papel que Vítor Constâncio sempre recusou a assumir pessoalmente.
Por exemplo, o antigo governador disse que era “genericamente” o responsável máximo do Banco de Portugal. “Há que fazer uma distinção entre o que é a participação pessoal ou não, o que é uma responsabilidade genérica de uma instituição. Numa grande organização, o presidente nunca é informado de tudo. Não é da responsabilidade de gestores de topo, sobretudo de quem não tem a responsabilidade direta da supervisão”, afirmou quando lhe perguntaram se o supervisor sabia de eventuais irregularidades no banco público, nomeadamente operações que não seguiram as regras internas. Vítor Constâncio admite a possibilidade de atos ilícitos, mas duvida que tenham existido.
Também lembrou que “a CGD sempre foi uma instituição que nunca deu muitas preocupações” ao Banco de Portugal. Aqui, Vítor Constâncio socorreu-se de vários indicadores: lucros de biliões de euros, taxa de rentabilidade mais alta do mercado, rating de grande qualidade. Só que veio a crise e foi a “explosão geral” no crédito malparado que afetou todo o setor financeiro.
Podemos não gostar dos famosos créditos, mas a supervisão não podia fazer nada para evitá-los porque foram operações legais.
Por várias vezes os deputados tentaram puxar pela memória de Vítor Constâncio sobre os alertas de Almerindo Marques, antigo administrador do banco público, que lhe enviou duas cartas a denunciar operações irregulares e lesivas para a CGD. Mas o esforço dos deputados foi em vão porque o antigo governador não se lembra da correspondência:
– “Se a carta existiu, haverá registo no Banco de Portugal. Não tenho ideia dessa carta. Não tenho obrigação de ter memória de todas as cartas, era impossível”, afirmou Vítor Constâncio, encolhendo os ombros.
Ainda assim, mais tarde, quando foi novamente confrontado com o tema, o antigo governador disse lembrar-se do que lhe lhe transmitiu o seu vice (que era quem tinha o pelouro da supervisão): “As respostas que obtive é que as operações eram legais“.
Foram vários os momentos de exaltação de Vítor Constâncio, muitas vezes de irritação quando os deputados acusavam-no de não ter atuado nos empréstimos ruinosos da CGD que o relatório da EY expôs. O ex-governador dizia sempre que se tratavam de operações legais, e que sendo legais o supervisor não podia impedi-las.
“Podemos não gostar dos famosos créditos, mas a supervisão não podia fazer nada para evitá-los porque foram operações legais”, disse por várias vezes. “É a lei, é a lei, é a lei”, chegou a responder por cima de uma intervenção de Mariana Mortágua.
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