Draghi facilitou trabalho a Lagarde e deixa-lhe legado mais “leve” mas “exigente”
Draghi aliviou o legado deixado a Christine Lagarde com as medidas anunciadas em setembro, dizem os economistas. Francesa recebe legado "exigente", mas mais "leve", frisam.
Os economistas contactados pela Lusa consideram que as medidas anunciadas por Mario Draghi em setembro facilitaram o trabalho a Christine Lagarde, que recebe do italiano um legado “exigente”, mas mais “leve” do que dos anteriores presidentes do BCE.
“Cremos que Mario Draghi facilitou o trabalho de Lagarde, nomeadamente ao ter anunciado já as medidas de estímulo na última reunião [de setembro]. Diria que o legado de Draghi não é pesado, mas leve”, afirmou Rui Bernardes Serra, economista-chefe do Montepio, à Lusa, acrescentando que “é mais fácil suceder a Draghi do que ter sucedido aos anteriores presidentes do Banco Central Europeu (BCE)”.
Já Clara Raposo, professora e presidente do ISEG, considerou que “a herança deixada a Christine Lagarde é exigente”, o que “não se deve propriamente a Mario Draghi, mas sim à natureza da união económica e monetária e ao atual contexto internacional, geopolítico e económico”.
João Borges Assunção, professor da Universidade Católica, afirmou, por seu turno, que “a nova presidente do BCE entra numa altura em que há uma divisão clara entre os membros do Conselho de Governadores do BCE em matéria de condução da política monetária”. Segundo o professor da Católica, a “principal tarefa” de Lagarde “será conseguir dar ao Conselho a liderança intelectual que o seu antecessor atingiu, o que lhe permitirá comunicar eficazmente com o mercado e com os vários governos nacionais dos países que integram a zona euro”.
No mesmo sentido, Clara Raposo frisou que a primeira grande tarefa de Lagarde será “encontrar uma forma de funcionamento harmoniosa com a sua equipa no BCE” e que “só assim poderá ter eficácia na definição de políticas que vier a querer implementar”.
Francesco Franco, professor da Nova School of Business and Economics (Nova SBE), salientou, à Lusa, que “Draghi deixa um banco central que produz pesquisas de vanguarda úteis para capacitar os decisores” e que dispõe de “um conjunto renovado de ferramentas de política monetária que são coerentes com os novos níveis da taxa de juro natural”, ou seja, a taxa de juro ideal para o banco central.
No mesmo sentido, segundo Rui Bernardes Serra, “Draghi fez uma leitura extensiva dos tratados europeus”, que proíbem o financiamento dos Estados em mercado primário, mas não o proíbem em mercado secundário, o que faz com que o BCE esteja atualmente a financiar os Estados através das suas compras em mercado secundário. “Com Draghi, o BCE utilizou instrumentos nunca antes utilizados pela instituição, nomeadamente, os programas de compra de dívida”, salientou o economista-chefe do Montepio.
Contudo, apesar dos avanços, Francesco Franco destacou que “a arquitetura da área do euro ainda está inacabada” e que “Lagarde tem uma tarefa difícil pela frente”. “Mas, devido ao seu histórico percurso, sou otimista”, acrescentou o docente da Nova SBE.
Para Clara Raposo, “Lagarde é ainda uma incógnita enquanto líder do BCE”. Christine Lagarde deixou a liderança do Fundo Monetário Internacional (FMI) para ser presidente do BCE, funções que vai exercer a partir de 01 de novembro.
“Adeus” a Draghi no BCE será “tranquilo”
Os economistas ouvidos pela Lusa antecipam que Mario Draghi não deverá anunciar novas medidas na sua última reunião à frente dos destinos do BCE e consideram que as medidas anunciadas na reunião de setembro terão sido suficientes.
“Creio que a despedida de Mario Draghi será tranquila, pautada por um agradecimento e homenagem prestados pelo Banco Central Europeu (BCE) pela dedicação e persistência da sua ação na defesa da coesão e sustentabilidade do projeto da zona euro”, afirmou à Lusa Clara Raposo, professora e presidente do ISEG.
“O mandato de oito anos de Mário Draghi termina em 31 de outubro, no mesmo dia do Brexit [saída do Reino Unido da União Europeia]. Espero que a transmissão de mandato a Christine Lagarde aconteça de forma suave”, comentou Francesco Franco, professor da Nova SBE.
Questionados sobre se serão anunciadas novas medidas na reunião de política monetária de 24 de outubro, a última de Mario Draghi como presidente do BCE, os economistas ouvidos pela Lusa consideram que, à partida, não haverá novidades.
“Penso que não. Até porque há um certo sentimento, entre os observadores independentes, de que as decisões da reunião anterior terão sido extemporâneas”, referiu João Borges Assunção, professor da Universidade Católica.
Clara Raposo também duvida de que Draghi anuncie novas medidas no dia 24 de outubro, “deixando espaço para a sua sucessora”, “a não ser que aconteça de repente algo verdadeiramente inesperado nos próximos dias que exija uma especial intervenção por parte do BCE”. “Não creio que sejam anunciadas novas medidas”, respondeu, no mesmo sentido, Rui Bernardes Serra, economista-chefe do Montepio.
No final da reunião de política monetária de 12 de setembro, o BCE desceu, como esperado, a taxa dos depósitos bancários para -0,50%, menos uma décima do que a anterior, e anunciou um novo programa de compra de dívida pública. A nova descida da taxa dos depósitos visa incentivar os bancos a injetarem mais dinheiro na economia, através de empréstimos às empresas e famílias, em vez de acumularem reservas.
Sobre se Mario Draghi podia ter anunciado ‘maior poder de fogo’, em setembro, os economistas consideram que o pacote de ação anunciado foi na dose certa. “Achamos que as medidas foram suficientes. Se pecou, foi por excesso”, respondeu Rui Bernardes Serra.
Segundo Francesco Franco, “um aspeto do mandato de Draghi que parece muito robusto é que o nível de medidas adotadas sempre foi calibrado com previsões disponíveis”. O docente da Nova SBE frisou que “as críticas crescentes”, sobretudo dos membros alemães do conselho do BCE em relação às taxas de juros muito baixas “são erroneamente direcionadas ao BCE, cujo mandato de política monetária não é definir a sua política levando em consideração a carteira de poupança das famílias alemãs”.
Segundo Clara Raposo, “a mais recente intervenção de Mario Draghi teve já em conta a sua perspetiva de saída no muito curto prazo e a consciência de que virá um novo ciclo”. “Creio que teria sido deselegante na fase final do mandato, quando já tem sucessora nomeada, assumir maior protagonismo. Os seus ‘apelos’ hoje também não terão o mesmo poder de influência”, acrescentou a professora do ISEG .
Questionados sobre se, na sua despedida, Mario Draghi voltará a lançar um repto aos governos, no sentido de que falta ação política ao nível orçamental na zona euro, João Borges Assunção considerou que “o seu legado ficará mais protegido se evitar esse tipo de referências na última reunião, numa altura em que há outro tipo de prioridades na governação da União Europeia e dos seus principais países”.
O professor da Católica recordou que Draghi “falou abundantemente, e com razão, sobre os limites da política monetária e sobre a necessidade de recorrer aos outros pilares da política económica para melhorar o desempenho económico da zona euro”. Já Rui Bernardes Serra admitiu que Draghi pode reiterar esse pedido na sua última reunião como presidente do BCE.
O economista-chefe do Montepio recordou que, no seu comunicado de política monetária da reunião de 12 de setembro, Draghi já referiu que nos países onde a dívida pública é elevada, os governos necessitam de adotar políticas prudentes que criem condições para que os estabilizadores automáticos operem livremente, “o que constitui uma novidade no seu discurso”.
“É possível que se dirija aos governos no sentido de os alertar para a necessidade de estarem atentos, dialogarem e consertarem posições caso queiram que o projeto europeu se afirme num mundo cada vez mais competitivo”, referiu Clara Raposo. “Duvido, porém, que faça sugestões concretas. Daqui a uns meses, depois de ter Lagarde já instalada, então sim, voltaremos a ouvir Draghi”, antecipou a professora do ISEG.
O “dragão”, “padrinho” e “guardião” que evitou “maus caminhos” ao euro
Os economistas ouvidos pela Lusa consideram que Mario Draghi ficará na história como o banqueiro central que teve a coragem de salvar o euro, quando muitos acharam que era uma “missão impossível”, e sugerem vários cognomes ou epítetos. Mario Draghi preside à sua última reunião como presidente do Banco Central Europeu (BCE) na quinta-feira, 24 de outubro, depois de oito anos à frente dos destinos da autoridade monetária da zona euro.
“Em alternativa ao já popularizado ‘Super Mario’, que não deixa de lhe assentar bem, especialmente se nos recordarmos de quando muitos acreditavam que a sua missão era impossível, penso que poderíamos também adotar o cognome de ‘Guardião do Euro’”, afirmou Clara Raposo, professora e presidente do ISEG, em declarações à Lusa.
Francesco Franco, professor da Nova School of Business and Economics (Nova SBE), considerou que o sobrenome do ainda presidente do BCE “é muito adequado”. “Draghi significa ‘Dragões’ (no plural) em italiano”, disse. Rui Bernardes Serra, economista chefe do Montepio, comentou, por seu turno, que “Draghi não foi o pai do euro, mas foi certamente aquele que se substituiu aos pais e evitou que o adolescente ‘euro’ fosse por maus caminhos”. “Bem podia ser assim o padrinho do euro. Mas esse nome em Itália tem segundas interpretações. Talvez seja simplesmente “Il Salvatore del Euro”, acrescentou o economista-chefe.
Para Rui Bernardes Serra, Mario Draghi “foi claramente o presidente do BCE que mais contribuiu para a preservação do euro”. O economista-chefe do Montepio recordou que existe uma medida que mede a probabilidade de a zona euro terminar – o ‘Sentix Euro Break-up Index’ –, e que essa probabilidade chegou a atingir um valor máximo de 73% em julho de 2012.
“No dia 26 de julho de 2012, Draghi proferiu a mais famosa e determinante frase do seu mandato: ‘O BCE está preparado para fazer tudo o que for preciso para preservar o euro. E, acreditem em mim, será suficiente’. Podemos, assim, dizer que sim, Draghi pode ter salvado o euro”, referiu o economista-chefe.
No mesmo sentido, João Borges Assunção, professor da Universidade Católica, considerou que “poder-se-á dizer que Draghi foi mais influente do que os seus antecessores, apenas dois” – o francês Jean-Claude Trichet e o holandês Wim Duisenberg, que foi o primeiro presidente da instituição.
O docente da Católica recordou que o mandato de oito anos de Draghi coincidiu com o período de 2011 a 2019, em que a política monetária foi, à escala mundial, um dos principais instrumentos da política económica.
“E com desafios invulgares devido à co-ocorrência de diversos fatores: risco sistémico no setor financeiro, risco de sustentabilidade da dívida de países desenvolvidos, inflação muito baixa e, pontualmente, deflação e taxas de juro próximos do limite inferior de zero”, recordou. Segundo Francesco Franco, “a história é escrita pelos vencedores”, pelo que será necessário esperar. “Pessoalmente, acredito que ele merece ser lembrado como um banqueiro central extremamente experiente que teve a coragem de tomar decisões. Na hora mais sombria, salvou a zona euro”, disse.
João Borges Assunção recordou ainda que, “no início, havia algumas dúvidas sobre se [Draghi] teria todas as condições para desempenhar um bom mandato”, frisando ser “incontroverso que a generalidade dos observadores considera que fez um bom mandato”.
Para Clara Raposo, “Mario Draghi foi um resistente e garantiu alguma coesão na zona euro”, tendo sabido “liderar e manter um rumo, mesmo quando foi muito criticado”. “Sem essa determinação não é certo que o euro tivesse resistido”, frisou a professora do ISEG, acrescentando que, “por muito que hoje se estranhe o longo período de taxas de juro baixas (até negativas), a verdade é que o euro atravessou a crise financeira iniciada em 2007 e as crises soberanas subsequentes, tendo-se afirmado como uma moeda estável e mais resiliente do que muitos críticos esperariam”.
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