O ano de Murphy da Caixa
Nomeações chumbadas, salários milionários, uma comissão de inquérito, um plano de recapitalização, demissões, o rating sob vigilância. Relembre o ano desastroso da CGD, segundo as oito leis de Murphy.
Tem uma torrada? A torrada tem manteiga? E caiu ao chão? O lado que toca no chão é o da manteiga. A Lei de Murphy é simples, mas a Caixa Geral de Depósitos aprendeu-a da forma mais difícil. Desde a nomeação de oito gestores “inadequados” para a administração, a um rating que já está sob vigilância com tendência “negativa”, passando por salários “inaceitáveis” e por uma falta de transparência sem precedentes, tudo o que podia ter corrido mal para o banco público, correu.
1. Se algo pode correr mal, vai correr
31 de dezembro de 2015
O mandato de José de Matos à frente da Caixa Geral de Depósitos terminava com o ano. No seu lugar, um vazio de alternativas e o prenúncio de uma história que ainda não está fechada. Começou aqui o ano de Murphy do banco público português: se alguma coisa podia correr mal, Governo, oposição, esfera pública e a própria Caixa fizeram um esforço notável para que corresse mesmo.
Ainda o Executivo de António Costa não tinha tomado posse, no final de outubro de 2015, e a imprensa já escrevia sobre a renovação da administração da Caixa. António Ramalho, Sérgio Monteiro, Fernando Teixeira dos Santos e Carlos Costa Pina eram as hipóteses apontadas na altura. O Governo acabou por entrar em funções a 26 de novembro de 2015 e conseguiu o feito de chegar a abril deste ano sem substituto para José de Matos. Só no dia 15 é que se soube que António Domingues seria o seu sucessor.
O gestor, com duas décadas de escola BPI, tomou posse a 31 de agosto. Com ele, viriam outros 18 administradores. Viriam, porque nem todos foram aprovados pelo Banco Central Europeu. Era só o início.
2. Entram duas meias na máquina. Uma desaparece para todo o sempre
Maio de 2016
Duas meias entram numa máquina de lavar. Uma volta a sair, a outra desaparece para todo o sempre. Caro leitor, substitua as meias por euros e fica com a história de como a Caixa tem de ser recapitalizada. Outra vez.
Vamos a contas. Entre 2008 e 2014, segundo os dados do Tribunal de Contas, os aumentos de capital feitos no banco do Estado totalizaram 3,6 mil milhões de euros. Por outro lado, estas injeções de capital resultaram em apenas 441,6 milhões de euros de receitas. Ou seja: 3,16 mil milhões de euros entraram na máquina e nunca mais saíram.
Passaram-se dois anos e o banco público ainda não conseguiu livrar-se da “carga negativa de maus e antigos créditos concedidos nos anos anteriores” – assim era a justificação dada por José de Matos para os maus resultados –, onde se incluem as operações feitas com o grupo catalão La Seda Barcelona, na era José Sócrates. Resultado: a CGD vai a caminho do sexto ano consecutivo de prejuízos. No conjunto dos nove primeiros meses deste ano, a CGD reportou prejuízos de 189,3 milhões de euros.
Foi neste contexto que o Governo aprovou, em maio, uma injeção de capital na Caixa que podia ir até aos 4 mil milhões de euros, condição, aliás, imposta por António Domingues para aceitar liderar o banco público. O plano de recapitalização veio a ser desenhado pelo próprio Domingues, ainda antes de tomar posse como presidente do banco.
O plano, entretanto aprovado, a 9 de dezembro, pelo Banco Central Europeu e pelo Banco de Portugal, tem números diferentes dos iniciais: prevê um aumento dos capital social em 5,9 mil milhões de euros, para 7,3 mil milhões. Este reforço será integralmente subscrito pelo Estado e realizado através da transferência de ações da Parcaixa (no valor de 490 milhões) e do “perdão” dos 900 milhões de CoCos.
3. A informação mais importante do mapa está sempre nas pontas
5 de julho
Se é preciso mais dinheiro para salvar o banco público, as probabilidades são de que haja informação por vir à tona. Isso mesmo assumiram o PSD e o CDS, que, a 20 de junho, formalizaram um pedido para que fosse constituída uma comissão parlamentar de inquérito à gestão feita na CGD desde o início deste milénio. Duas semanas depois, a 5 de julho, tomava posse a Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à Gestão do Banco (com a amigável sigla CPIRCGDGB).
José de Matos, Carlos Costa, Mário Centeno, António Domingues, Guilherme d’Oliveira Martins, Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix (os três últimos na qualidade de antigos ministros das Finanças) já foram ouvidos.
Terminada a pausa para o bacalhau do Natal e as passas do Ano Novo, a Comissão será retomada em janeiro. António José de Sousa (antigo presidente da CGD), Luís Campos e Cunha (ministro das Finanças no Governo de José Sócrates), Teixeira dos Santos (ministro das Finanças no segundo Governo de José Sócrates), Vítor Martins e Carlos Santos Ferreira (ambos antigos presidentes da CGD) vão sentar-se, em janeiro, para serem ouvidos pelos deputados.
4. A fila do lado é sempre mais rápida
Agosto. E outubro. E novembro e dezembro
O processo de adaptação da nova equipa de administração podia ter sido rápido? Podia. Mas, e se for possível arrastá-lo? Terá sido essa a lógica do Banco Central Europeu, da oposição e da própria esquerda.
É o BCE que dá início às grandes polémicas da Caixa. O regulador da banca europeia só aprovou 11 dos nomes propostos pelo Governo para o Conselho de Administração da CGD, chumbando os outros oito por considerar que excediam o limite de cargos em órgãos sociais de outras sociedades. Leonor Beleza, Carlos Tavares, Bernardo Trindade, Ângelo Paupério, Rui Ferreira, Paulo Pereira da Silva, António da Costa Silva e Fernando Guedes foram os gestores rejeitados pelo BCE.
As polémicas podiam ter ficado por aí, mas a revelação de quanto ia receber o novo presidente da CGD foi suficiente para incendiar um Parlamento inteiro, e por largas semanas. Direita e esquerda classificaram o valor de 423 mil euros anuais pagos António Domingues de “inaceitável” e até o Presidente da República considerou que não era “desejável” pagar ao gestor de um banco público o que se paga ao de um banco privado.
E se a (segunda) renovação da administração da CGD podia ter sido a oportunidade para acalmar os ânimos, não foi. Paulo Macedo, o sucessor de António Domingues, também vai ganhar 423 mil euros por ano.
5. Mesmo que prove uma mentira, vai sempre haver quem acredite nela
23 de outubro
O drama da entrega das declarações de rendimento e património dos gestores da CGD começa. Foi neste dia que Marques Mendes alertou que António Domingues e os administradores da Caixa estavam “desobrigados” de declarar rendimentos e património ao Tribunal Constitucional. Pelo menos foi isto que ficou determinado quando o Governo fez alterações ao Estatuto de Gestor Público.
António Domingues nunca mudou a sua posição. “Estamos a respeitar a lei”, disse. Mas estariam mesmo? Ao que parece, não. O presidente demissionário da CGD disse ter um parecer jurídico que validava os seus argumentos. Um parecer que nunca existiu.
Mas, para Mário Centeno, estava tudo bem. Houve um acordo – falado e nunca escrito – que determinava que a nova administração da CGD só tinha de prestar contas ao Governo, uma vez que público estava a ser tratado “como outro banco qualquer”. Mas a Caixa não é um banco qualquer, é o banco do Estado. O secretário de Estado do Tesouro, Mourinho Félix, garantiu que não existia qualquer acordo, o constitucionalista Jorge Miranda disse ser “uma situação lamentável” e os partidos uniram-se.
Surgiram propostas da esquerda à direita. E todas no mesmo sentido, de obrigar os gestores a revelar os salários. O próprio PS defendeu a entrega das declarações no TC. O tribunal concordou e António Domingues saiu dias antes do final do prazo para a entrega.
6. A torrada vai sempre cair com o lado da manteiga no chão
27 de novembro
António Domingues bateu a porta. Mas não está zangado. “Não, por amor de Deus, porque é que haveria de sair zangado?”. O presidente demissionário da Caixa manteve sempre a mesma posição em relação à entrega da declaração de rendimentos.
Mas acabou mesmo por entregá-la quando se demitiu. Com ele, vários outros administradores do banco público, incluindo alguns que também apresentaram a sua demissão. Mas porquê entregar nessa altura? Transparência. Os gestores não querem que existam dúvidas sobre os seus rendimentos.
O administrador demissionário da Caixa descreveu o último mês como um “turbilhão mediático politicamente instrumentalizado”. Uma polémica que dominou a vida da Caixa durante algum tempo. Mas há que apanhar a torrada do chão e começar de novo.
7. Levamos chapéu-de-chuva, mas nunca chove. Deixamo-lo em casa e há uma tempestade
29 de novembro
Claro que o pior ainda não tinha passado. Depois de uma dupla renovação da equipa, uma comissão de inquérito, um plano de recapitalização, um chumbo do BCE, a novela dos salários milionários e o drama das declarações, a “tempestade” DBRS entrou na festa.
A agência de notação canadiana colocou o rating BBB (baixo) do banco estatal português Caixa Geral de Depósitos sob vigilância de pendor negativo. Portanto, poderia cortar a qualquer momento o rating do banco estatal. O que levou a agência a tomar esta decisão? O aumento dos riscos, ou seja, a saída do presidente. Riscos que diminuíram “significativamente”, disse entretanto a DBRS, que voltou a subir a perspetiva para estável face a negativa. O cenário parecia estar a melhorar para o banco estatal.
8. As coisas perdidas estão sempre no último lugar onde as procurámos
2 de dezembro
A gestão está, pouco a pouco, a reorganizar-se. Domingues saiu, mas o Governo já estava a remexer nas suas “gavetas”, à procura do melhor candidato à liderança do banco estatal.
Mas onde é que o Governo iria agora procurar outro presidente? No Governo. Mais propriamente, num outro Executivo. O de Passos Coelho. Ainda se falou de Nuno Amado, presidente executivo do maior banco privado português, ou de Carlos Tavares, ex-presidente da CMVM. Mas Paulo Macedo, ex-ministro e antigo vice-presidente do BCP, é que foi escolhido.
Sensível à polémica em torno da CGD, Macedo deu a mão a António Costa nesta saga. Mas não está sozinho. Conta com José João Guilherme, antigo administrador do BCP e do Novo Banco, e do adjunto do secretário de Estado do Tesouro, Nuno Martins. Com uma administradora, Maria João Carioca, que abandona a liderança da Euronext Lisboa. E ainda com Francisco Cary, quadro do Grupo Espírito Santo e administrador do BES Investimento.
A nova “família” da Caixa não assume já funções. Isto só deve acontecer em janeiro. Mas, mais uma vez, tudo depende do BCE. Uma dependência que é “uma humilhação de soberania”, diz Bagão Félix. Será que o banco central vai voltar a chumbar a equipa? Não perca o próximo episódio, porque nós também não.
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