Para uns, é o futuro do sistema financeiro. Para outros, é uma forma de gerar riqueza. A subida recente da bitcoin faz "fortunas", mas os reguladores alertam para o risco de também poder perder tudo.
“No mundo das criptomoedas acontece tudo muito rápido. Mas, quando se entra, é como se fosse um bichinho que morde.” Quem o diz é Cátia Azenha, 37 anos, formada em engenharia e entusiasta do fenómeno. Ouviu falar da bitcoin pela primeira vez em 2014, ano em que o preço da moeda variou entre 309 e 971 dólares. Mas não investiu.
Não é caso isolado. Entre comunidades no Reddit e grupos no Facebook, é fácil encontrar quem teve o primeiro contacto com a moeda muito antes de o mercado ser o que é hoje. Porém, o pouco conhecimento disponível na altura, bem como a dificuldade em adquirir ativos virtuais, eram autênticos fatores de bloqueio.
Cada unidade de bitcoin atingiu, já este ano, um valor superior a 40 mil dólares — e vale esta terça-feira cerca de 46.971 dólares, depois de a Tesla ter anunciado que vai passar a aceitar a criptomoeda como forma de pagamento. Preços que, há poucos meses, seriam, por muitos, considerados absurdos. Mas não para quem guardou ativos deste tipo ao longo de todos estes anos, tendo visto, com as novas subidas, o portefólio multiplicar-se por quatro ou cinco.
Para esses, a subida da bitcoin e de outras criptomoedas, verificada ao longo destas últimas semanas, era há muito aguardada. Inevitável, até.
Evolução do preço da bitcoin
Fonte: CoinDesk
Hold on for dear life
A bitcoin foi um dos ativos que mais valorizou em 2020, perante a surpresa de alguns e a forte convicção de outros. Apesar dos riscos de perda da totalidade do capital, sempre lembrados pelos reguladores — e das histórias de descalabro financeiro de quem comprou caro e vendeu barato por volta do pico de 2017 –, houve quem se mantivesse firme ao longo de todo este tempo, optando por duas outras máximas: o manter e o acumular.
Para Cátia Azenha, entre o primeiro contacto e o primeiro investimento, passaram cerca de três anos — foi em 2017 que entrou “oficialmente” no mundo das criptomoedas. “O primeiro preço a que comprei [bitcoin] foi cerca de 8.200 dólares”, recorda. Conta que, logo nesse ano, mais do que duplicou o investimento inicial.
No final de dezembro de 2017, a bitcoin passou a fasquia dos 19 mil dólares, um pico apenas suplantado na reta final de 2020. “Mesmo depois de bater o máximo, continuei a investir um pouco e a ver o meu dinheiro desvalorizar”, explica, referindo-se ao período depois do boom de 2017.
Não desmotivou. Testou o mercado das chamadas altcoins — criptomoedas alternativas que foram sendo lançadas nos últimos anos, com objetivos, características e valorizações diferentes. Com elas, ganhou também “algum dinheiro”.
Na comunidade, este tipo de investidores são apelidados de hodlers. O termo deriva do acrónimo HODL (hold on for dear life, algo entendível como “manter para a vida toda”). São investidores que não querem vender, uns por procurarem valorizações cada vez maiores, outros por acreditarem que as criptomoedas vão assumir um papel central no sistema global de pagamentos, eventualmente em nome próprio.
Durante estes anos, Cátia Azenha foi tendo experiências de todos os tipos. “Costumo dizer que já tudo me aconteceu. Cheguei a perder dinheiro com uma exchange [corretora] italiana que fechou de um dia para o outro”, admite. “O processo ainda rola em tribunal até hoje.”
Num “mundo” dominado por homens, Cátia Azenha decidiu, no final de 2020, lançar uma comunidade para ajudar a informar as potenciais investidoras sobre como investir em criptomoedas. Como tal, lançou o projeto MundoCripto.Feminino, sob a égide: “Pretendemos mostrar as mulheres do mundo cripto e o mundo cripto para as mulheres.”
“Está a bombar”
Ao telefone com o ECO, Fred Antunes é subitamente interrompido: “Está a bombar”, ouve-se do outro lado da chamada. Com 38 anos, o presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas (APBC), também presidente executivo da startup RealFevr, pede desculpa. Era um vizinho que lhe acenava, entusiasmado com a subida do valor da bitcoin.
Fred Antunes assegura ser um veterano nestas andanças das criptomoedas. Conheceu a bitcoin em 2009 ou 2010, pouco depois do surgimento da moeda, altura em que esta valia poucos cêntimos. Nessa altura, chegou a trocar várias bitcoin por dinheiro virtual no jogo World of Warcraft, “sem pensar” que o fenómeno “viria a atingir esta escala”.
Em maio de 2014, Fred Antunes comprou equipamentos para minerar bitcoins — um termo que se refere à atividade de processamento de transações, remunerada através da emissão de novas unidades da criptomoeda. “Na altura, aquilo dava 30 bitcoins de três em três dias. Era uma maravilha”, lembra. “Vendi muita bitcoin a 200 dólares, 100 dólares”, assegura.
Hoje, assume que tem “de tudo”, desde as criptomoedas mais populares, como a bitcoin, até às mais obscuras. Questionado sobre se poderia reformar-se e viver do portefólio de criptomoedas, Fred Antunes ri. E responde: “Com o estilo de vida modesto que eu faço, teria riqueza para a minha mulher, a minha filha e para as próximas dez encarnações.”
Mesmo assim, não se ilude. “Hoje vale 35 [mil dólares], amanhã pode valer um, ou até pode ser proibida”, assegura o presidente da associação. Diz ter aproveitado as mais-valias para financiar projetos próprios e promover conferências, para “evangelizar” as regalias das criptomoedas.
“Gostaria sempre de ser visto como uma pessoa que nunca cedeu às tentações da luxúria e riqueza pelo que acumulou em cripto [criptomoedas], mas que mais contribuiu em Portugal” para o desenvolvimento da comunidade. “Aquilo que gostaria de ser visto não era de ser milionário da bitcoin, que comprou um Lamborghini e um palácio em Sintra, mas que recebeu e devolveu na totalidade”, ironiza.
[Se vendesse as minhas criptomoedas], com o estilo de vida modesto que eu faço, teria riqueza para a minha mulher, a minha filha e para as próximas dez encarnações.
“É quase uma irresponsabilidade não ter hoje bitcoin”
Rúben Martins, 26 anos, engenheiro informático, não sabe ao certo quanto já ganhou com as criptomoedas desde que começou a investir, em 2015 ou 2016. Calcula que o montante esteja entre quatro e cinco dígitos. “É muito difícil”, diz, pois foi reforçando a aplicação ao longo de vários anos, a preços diferentes.
“Tenho moedas a fazerem 10 vezes de valorização, outras que não correram muito bem”, aponta. Num dos piores casos, viu um investimento de 2.000 euros numa altcoin “reduzido a 50 euros”. “Foi um erro”, admite.
Tal como nas bolsas, é impossível de saber ao certo o que move o mercado das criptomoedas. Mas há pistas que têm muito peso. E a generalidade dos protagonistas ouvidos pelo ECO tende a apontar motivos semelhantes para a valorização da bitcoin e de outras criptomoedas nas últimas semanas: as políticas monetárias muito expansionistas dos bancos centrais, a “desvalorização” do euro e do dólar, e a entrada no mercado de investidores institucionais com os bolsos fundos (como a Tesla, que também anunciou ter investido 1,5 mil milhões de dólares na moeda virtual).
“Durante a pandemia, a quantidade de dinheiro impressa pelos governos [bancos centrais] foi estupidamente alta. Num só mês da pandemia, imprimiu-se tanto dinheiro como nunca tinha sido impresso”, remata Rúben Martins, que vê na bitcoin uma forma de escapar à “inflação” que acredita que há de vir.
Fred Antunes partilha da mesma opinião: a recente subida é “muito fácil de explicar”. Um dos primeiros fatores é a eliminação da “incerteza regulatória” de 2017. “Passou a ser claro para toda a indústria, grande capital e fundos licitamente constituídos que a bitcoin é legal, não vai ser ilegalizada, não vai ser ilícita. Essa certeza regulatória aumentou a confiança”, diz.
“Paralelamente, os EUA imprimiram mais dólares do que imprimiu nos últimos dez anos”, diz o presidente da APBC. Em causa está o facto de os bancos centrais, como a norte-americana Fed, poderem imprimir dólares por via da compra de ativos como a dívida governamental, efetivamente injetando liquidez na economia: estima-se que, no final de 2020, a entidade tenha comprado ativos no valor de 3,5 biliões de dólares.
“Quantos mais dólares existirem em circulação, maior é o valor da bitcoin, que tem oferta limitada”, aponta Fred Antunes, referindo-se ao código informático da criptomoeda que limita a circulação até um máximo de 21 milhões de unidades, mas também a um mecanismo chamado halving, programado no código da bitcoin, e que corta periodicamente para metade o ritmo de emissão de novas moedas.
Face a este cenário, para Rúben Martins, a conclusão é evidente: no plano da inflação, “é quase irresponsabilidade não ter hoje bitcoin”. Mesmo que a hipótese de subida generalizada dos preços dos bens, apesar de possível, seja descartada pela maioria dos economistas no cenário de pós-crise.
Rúben Martins é um hodler. Até no pico de 2017, decidiu não vender. Quando a bitcoin afundou em 2018, chegou a ser alvo de troça de alguns amigos. Esperou. Já no final de 2020, com mais-valias potenciais ainda maiores, decidiu começar a fechar posições: “Vendi um bocadinho… e já me arrependi.”
Um “pé de meia” em moeda virtual
João tem 36 anos e é professor. De forma a poder falar mais livremente da sua vida financeira, pede ao ECO para que não exponha o seu apelido.
É também um daqueles investidores que ouviu falar da bitcoin bem cedo, no final de 2009. Mas só investiu já durante o boom de 2017: “Tive um amigo que me pressionou bastante para entrar e fui. Muito a medo, muito a medo… e ainda bem que fui.”
Apesar de não ter “noções de trading” (a atividade de comprar e vender ativos com regularidade), foi investindo em criptomoedas “na perspetiva de as manter”. Calcula ter feito um “investimento pequeno” no total, mas não tem “bem a noção”. “Não tenho sequer o apontamento de todos os depósitos que fui fazendo”, admite.
Só “desde o início de dezembro até agora, a carteira está quase com quatro vezes mais”, remata. Neste momento, o valor “está muito próximo dos cinco dígitos”, revela.
João não tem intenções de vender. “Para mim, é para manter. Compro sempre quer bitcoin, quer as alts. A bitcoin porque acredito muito no projeto e vai atingir valores muito superiores. Nas outras, é tentar apostar no cavalo certo”, explica. Uma das regras da estratégia é não aplicar dinheiro que possa vir a precisar: “Vou só com o que não me faz falta.”
No final de 2020, João teve outra ideia: abrir uma carteira de bitcoin para dar ao filho quando este atingir a maioridade. “Criei uma para não misturar com a minha. Estipulei que, todos os meses, coloco um valor fixo. Faço a intenção de dar ao meu filho quando fizer 18 anos”, conta o investidor. Assim, “se um dia lá tiver alguma coisa, tem. Se não tiver, são menos uns cafés”, diz.
Tive um amigo que me pressionou bastante para entrar [no mercado das criptomoedas] e fui. Muito a medo, muito a medo… e ainda bem que fui.
“É um risco enorme”
Paulo Escovinhas Nunes considera-se um “empreendedor” da internet. Tem 38 anos e assume-se ainda como day trader. Descobriu e começou a investir em criptomoedas “muito antes do boom de 2017″ e mantém-se até aos dias de hoje, a par das apostas desportivas.
Desde o início, ao longo dos anos, calcula ter tido uma valorização do seu portefólio de criptomoedas na ordem dos “3.000%”. “Investi, mantive e ainda mantenho. Trabalho com uma carteira para longo prazo e outra para fazer trading. A ideia é criar riqueza”, explica.
Apesar da aposta num instrumento financeiro volátil como a bitcoin, Paulo Escovinhas Nunes reconhece que “é um risco enorme”. Lembra que, à medida que estes ativos vão valorizando, aumenta também o interesse das pessoas em investir, acabando muitas vezes por comprarem a preços elevados e a venderem em plena queda. “As pessoas só veem a ponta do iceberg”, remata.
Já assistiu a situações difíceis. “Tenho amigos meus que foram pedir empréstimos na altura [do pico de 2017], porque me viram a ter sucesso. Conheço casos em que a própria família tem poupanças de uma vida e que as quer pôr nas mãos de um jovem”, sinaliza. “Isto é um erro. Não se deixem ir na trend [tendência], na moda”, aconselha, referindo-se aos altos e baixos das criptomoedas.
No caso concreto de Paulo, a “adrenalina” da montanha-russa “acaba por influenciar” e é um fator de atração. Reconhece que investir em criptomoedas causa “ansiedade, nervosismo, instabilidade emocional”, até “a nível familiar”. Mas a experiência compensa: “Estou um bocadinho vacinado. Já estou um bocado vacinado para isso.”
Tenho amigos meus que foram pedir empréstimos na altura [do pico de 2017], porque me viram a ter sucesso. Conheço casos em que a própria família tem poupanças de uma vida e que as quer pôr nas mãos de um jovem.
Supervisores dizem-se limitados e aconselham prudência
Para além das perspetivas de valorização, as criptomoedas atraem investidores em Portugal por as mais-valias não serem tributadas pelo Fisco. Mas todo o investimento que muito sobe, também muito desce. Por ser um instrumento desregulamentado e descentralizado, Banco de Portugal e CMVM dizem-se atentos ao fenómeno, mas estão de mãos e pés atados naquilo que podem fazer.
Tal como a nível europeu, o foco da atenção dos supervisores debruça-se, sobretudo, sobre as entidades que emitam novas criptomoedas ou as plataformas de negociação que operem em Portugal. Mas, no caso da bitcoin, por exemplo, nem uma coisa nem a outra se aplicam necessariamente: não há um emitente e as transações podem ocorrer à margem de qualquer corretora.
Contactado pelo ECO, o Banco de Portugal diz que “continua atento ao fenómeno das moedas virtuais”. A entidade liderada por Mário Centeno tem ainda uma página dedicada às criptomoedas, na qual alerta para “os riscos associados a estes produtos”:
- “As moedas virtuais não têm curso legal em Portugal, pelo que a sua aceitação pelo valor nominal não é obrigatória”;
- “Não existe qualquer proteção legal que garanta direitos de reembolso ao consumidor que utilize moedas virtuais para fazer pagamentos, ao contrário do que acontece com instrumentos de pagamento regulados”;
- “Em caso de desvalorização parcial ou total das moedas virtuais, não existe um fundo que cubra eventuais perdas dos seus utilizadores, que terão de suportar todo o risco associado às operações com estes instrumentos”;
- “O utilizador de moedas virtuais pode perder o seu dinheiro na plataforma de negociação”;
- “As transações com moedas virtuais podem ser utilizadas indevidamente, em atividades criminosas, incluindo de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo”, indica o Banco de Portugal.
Postura semelhante é adotada pela CMVM, o regulador dos mercados de capitais. A entidade liderada por Gabriela Figueiredo Dias “está atenta e acompanha em permanência os fenómenos decorrentes da inovação e digitalização financeira, de que são exemplo os criptoativos”. Mas recorda que “o perímetro de atuação e supervisão de criptoativos por parte da CMVM está limitado aos classificados juridicamente como valores mobiliários”.
Não sendo proibida, a compra de criptomoedas pode-se fazer. Mas o mais avisado será o investidor informar-se bem. Numa montanha-russa como esta, à qual se junta a recente euforia dos investidores particulares em torno de ações como as da GameStop (ou até do preço da prata), toda a cautela é pouca.
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Subida da bitcoin faz fortunas em Portugal: “Tenho riqueza para dez encarnações”
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