Autoeuropa: Quando os representantes dos trabalhadores colidem
"Sempre houve uma certa tensão [com a Comissão de Trabalhadores] por o campo sindical ter uma visão mais politizada da relação entre a força de trabalho e os dirigentes", explica um sociólogo.
A Autoeuropa já participou em greves, nos anos da crise e da austeridade, mas o então membro da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa António Chora fazia sempre questão de sublinhar: era “uma luta política e não contra a administração da empresa”. Desta vez, pela primeira vez, os trabalhadores da Autoeuropa fazem finca-pé aos dirigentes e param durante 24 horas, a começar esta segunda-feira, às 23h30.
À convocação da greve antecederam-se os passos negociais do costume. Para o sociólogo Elísio Estanque, que falou ao ECO, a Autoeuropa e o grupo empresarial Volkswagen são um exemplo de uma empresa com “mecanismos de contestação e de diálogo internos bastante avançados e democráticos“. O que falhou?
Elísio Estanque, juntamente com colegas na equipa da Universidade de Coimbra onde está inserido, tem estudado a realidade da empresa há anos e vê agora “duas lógicas que são contrárias uma à outra”. A da Comissão de Trabalhadores, que é agora demissionária, e a dos sindicatos. “Sempre houve, desde há muito tempo, uma certa tensão devido ao facto de o campo sindical, principalmente os sindicatos ligados à CGTP, terem uma visão mais radical e politizada da relação entre a força de trabalho e os dirigentes”, afirmou.
A Comissão de Trabalhadores (CT), durante anos dirigida pelo histórico António Chora, tem agora à frente o coordenador Fernando Sequeira, demissionário juntamente com a sua equipa, e que por isso já não negoceiam pelos trabalhadores. Em causa, um pré-acordo negociado pela CT junto da administração da empresa, que faria com os trabalhadores passassem a trabalhar obrigatoriamente ao sábado, com folga ao domingo e uma folga rotativa ao longo da semana, e um novo horário por turnos — a compensação financeira passaria a ser de 175 euros acima do que a legislação obriga. No dia 19 de julho, uma esmagadora maioria dos trabalhadores chumbou o pré-acordo.
A 3 de agosto, o coordenador Fernando Sequeira escrevia no jornal regional de Setúbal Rostos palavras fortemente condenatórias dos sindicatos afetos à CGTP, em especial os representantes do SITE-Sul, e demitia-se de sindicalizado nessa organização. “Na Autoeuropa, alguns, começando pelo SITE-Sul (sindicato ainda maioritário), cavalgando a onda do descontentamento, preferem trabalho extraordinário à criação de emprego”, exemplificava, continuando: “Esperemos que depois do chumbo do pré-acordo o SITE-Sul faça uma reflexão sobre a agonia que está a provocar nas famílias e a sua forma de atuar no movimento sindical”. No princípio de agosto, a Comissão de Trabalhadores demitiu-se.
Ao ECO, o representante do SITE-Sul, Eduardo Florindo, disse que não fazia comentários à “opinião do ex-coordenador”, afirmando que “a atuação do SITE-Sul nunca foi nem será a de uma substituição”. Para o dirigente sindical, a Comissão de Trabalhadores e os sindicatos ambos tinham os seus papéis. “Neste momento, com a decisão da CT, claro que o sindicato aparece mais. Mas o sindicato não quer ocupar o espaço da CT“.
O sindicalista Rogério Silva, da também afeta à CGTP Fiequimetal, disse o mesmo ao ECO: “O sindicato sempre teve um papel ativo na empresa. O que aconteceu é que os trabalhadores rejeitaram o pré-acordo e, evidentemente, o sindicato não podia deixar os trabalhadores desarmados, sem qualquer proteção. Fizemos o que tinha de ser feito“, afirmou.
O que me parece que seria melhor seria uma reaproximação de posições entre a Comissão de Trabalhadores e o campo sindical. Tendo em conta o peso económico, e de certo modo social, desta empresa para a nossa economia, é demasiado arriscado deixar levar as tensões a um ponto de não retorno.
A fonte da Autoeuropa que falou ao ECO garantiu que a empresa fazia “tudo” para que não houvesse uma deslocalização da produção de certos componentes do novo modelo da Volkswagen, o T-Roc, que está a ser fabricado na Autoeuropa. Prevê-se, além de uma mudança nos turnos, que sejam integrados 2.000 novos trabalhadores, de forma faseada, dos quais pelo menos 750 já foram contratados.
No seu artigo de opinião, o ex-coordenador da Comissão de Trabalhadores Fernando Sequeira usava esses números de contratação como arma de arremesso contra os sindicatos. “Face a esta tomada de posição do SITE-Sul devemos questionar: será que a criação de 2.000 postos de trabalho na região não é importante? O sindicato preocupa-se ou não com o desemprego? Dá mais importância à luta sindical, ou defende o emprego e as famílias que dele dependem?”, escreveu.
Para o sociólogo Elísio Estanque, o estudo da Autoeuropa vai continuar. “Temos programadas entrevistas com pessoal da Autoeuropa para acompanhar os desenvolvimentos mais recentes”, disse o investigador da Universidade de Coimbra. Mas a situação atual, afirmou, “é arriscada”.
“É possível que se venham a radicalizar as posições e que se venha a colocar em risco alguns postos de trabalho, e isso seria mau para ambas as partes”, reconheceu o sociólogo. “O que me parece que seria melhor, seria uma reaproximação de posições entre a Comissão de Trabalhadores e o campo sindical. Tendo em conta o peso económico, e de certo modo social, desta empresa para a nossa economia, é demasiado arriscado deixar levar as tensões a um ponto de não retorno”.
António Chora demitiu-se em janeiro após 48 anos de descontos, e saiu da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa. O líder histórico dos trabalhadores nessa empresa disse então à agência Lusa que, não tendo planos imediatos para o futuro além de “algum descanso”, tencionava dedicar-se à melhoria da cultura sindical. “Em Portugal falta cultura sindical e até mesmo cultura política“, disse à agência. “Penso que era importante que houvesse mais cultura sindical, porque os futuros trabalhadores devem conhecer os seus direitos e saber como os podem exercer da melhor maneira, porque isto não é só obedecer a tudo”. E esta terça-feira, no dia anterior à greve, em entrevista ao Negócios, foi mais longe: Chora considera que o sindicato SITE Sul está a realizar “claramente o assalto ao castelo”, na “tentativa do PCP pressionar o Governo para algumas cedências noutros lados”.
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