Startup Simplex. A vaca voadora perdeu as asas?
Programa lançado pelo Governo teve três vencedores. Relatório publicado um ano depois diz que os projetos foram concluídos com sucesso. Mas quem os criou não tem a mesma opinião.
A história começa assim: a 20 de abril, Miguel Lupi Caetano e João Gomes, fundadores da Muu, uma app criada pela empresa que cofundaram, a Faarm, decidiram candidatar-se ao Startup Simplex, um programa inserido no Simplex+ do Governo. Liderado pela secretária de Estado e da Modernização Administrativa, Graça Fonseca, o concurso tinha como objetivo principal incorporar inovação na Administração do Estado e projetar o setor público como área de interesse para o desenvolvimento de novas ideias de serviços e produtos.
As ideias ou apps já criadas pelas três startups que sairiam vencedoras do concurso seriam inscritas no Simplex 2016 e levadas a cabo durante os 12 meses seguintes.
"Em maio [de 2016], cada uma das três será uma medida do Simplex, apresentado no início desse mês e posto em prática durante os 12 meses seguintes”.”
“A ideia é aproximar os jovens empresários do setor público e colocar as ideias de negócio ao serviço das pessoas. Hoje, existe uma enorme desconfiança dos mais jovens face aos decisores e esse é um dos grandes défices — para além do Orçamental — que temos de tratar de combater”, disse Graça Fonseca, em fevereiro de 2016.
Um shark tank no Estado
Durante o período de inscrições, o Startup Simplex recebeu 196 candidaturas. Os vencedores — entre eles a Faarm, com a app Muu — foram conhecidos após uma sessão de pitch, a 13 de maio de 2016. “A diversidade das 196 candidaturas leva-nos ao encontro do que aprendemos durante a volta Simplex. Os problemas que fomos ouvindo estão todos presentes nalguma das soluções apresentadas. É como se as pessoas nos dissessem: ‘sei que este problema existe e tive esta ideia para ajudar a resolvê-lo'”, dizia então a secretária de Estado. As três ideias vencedoras — da Faarm, da FireRisk e da pOw foram inscritas, logo depois, no programa Simplex 2016, “nos termos do artigo 13º do regulamento do concurso Startup Simplex”.
Na altura, em vésperas de conhecidos os finalistas, Graça Fonseca explicava ao Dinheiro Vivo que o programa criado visava envolver os cidadãos e fazer com que as pessoas pudessem desenvolver soluções para facilitar a relação entre as pessoas e o Estado. “Aprendemos duas coisas importantes: a primeira foi o peso das áreas sociais — saúde, educação e emprego — como objeto de estudo para soluções inovadoras. A segunda, a necessidade de desenvolver serviços de alerta e avisos em áreas transversais a toda a administração pública“, explicava, na véspera da sessão de pitch. “Queremos cruzar startups e makers com este esforço de simplificação de processos, já que se tratam de universos muito diferentes. Isto pode ser algo muito útil para o Estado e para quem quer criar novos negócios”.
No dia da apresentação do programa, António Costa dizia que até as coisas mais improváveis podiam acontecer, presenteando a ministra da Modernização Administrativa com um boneco que era uma vaca voadora. “Quando estava quase conformado, um dia, no aeroporto de Londres, ao passar por uma loja, encontrei um objeto que adquiri, que mantive cuidadosamente ao longo destes dez anos e que vou hoje oferecer à senhora ministra da Presidência. Demonstra que mesmo aquilo que é mais improvável, como seja as vacas voarem, também isso pode não ser verdade. Até as vacas podem voar”, disse o primeiro-ministro.
O concurso Startup Simplex teve três vencedores que, como previsto, foram inscritos no Simplex+2016 e anunciados como concluídos em 2017, altura em que o Governo lançou a 2ª edição do concurso.
Os vencedores eram descritos da seguinte forma:
- pOw – Paga ao Estado: uma carteira digital que substitui o dinheiro vivo. O Paga ao Estado é uma feature do pOw que permite a qualquer pessoa receber as notificações de pagamento, multas e faturas pelo telemóvel, e pagar logo, calendarizar o pagamento ou criar alerta. Diminui em 75% os custos do Governo com este processo.
- Firerisk: reúne dados abertos de diferentes autoridades públicas numa única plataforma sobre incêndios florestais. A sua proposta de valor está ligada à área de risco, ambiente, sustentabilidade e participação do cidadão. A app é ‘inovadora e exclusiva’ em Portugal e tem como objetivo contribuir para a mudança de paradigma da participação do cidadão na mitigação dos incêndios florestais.
- Muu: desenvolver uma integração que permita que as aplicações de rastreabilidade de bovinos comuniquem diretamente e em tempo real.
“Quando ganharam, o primeiro objetivo era incentivar os empreendedores a pensar o setor público como um mercado potencial para os seus produtos. E pensarem nas suas soluções como produtos ou serviços que podem aplicar-se, não só ao setor privado numa lógica de rentabilidade pela venda, mas colocando as startups a trabalhar no setor da cidadania, pondo a administração pública no radar dos empreendedores”, esclarece Graça Fonseca, ao ECO.
Com bastante cobertura mediática, o concurso teve tudo para ter um impacto positivo desde o seu início.
“A nossa ideia era simples: desenvolver a integração que permitia que as aplicações de rastreabilidade de bovinos em Portugal, incluindo a nossa aplicação Muu, comunicassem diretamente e em tempo real com o SNIRA – Sistema Nacional de Informação e Registo Animal. Esta medida permitiria que todas as explorações de bovinos poupassem até 36 euros em serviços, por ano e por cabeça de gado. Permitiria também que, com a partilha dos dados em regime contínuo com as empresas do setor, a Administração Pública poupasse em processos de controlo”, explica Miguel Lupi ao ECO. Poupar e poupar. Mas foi nessa altura que começaram as complicações. Estávamos em maio de 2016.
Da primeira à última reunião
Na primeira reunião com parceiros, marcada para 14 de junho, correu pior do que Miguel imaginava. À mesa sentaram-se Graça Fonseca, o secretário de Estado da Agricultura e Alimentação e o assessor deste último, ligado à direção-geral de Agricultura Veterinária (DGAV). “Ficou claro para todos nessa reunião que as aplicações e bases de dados sob gestão do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) não permitem funções de escrita por outras aplicações, o que torna impossível e limitativa a criação de um integrador e comunicação entre múltiplas plataformas via internet”, conta Miguel, acrescentando que “a postura do Ministério da Agricultura nestas reuniões, em especial da parte do gabinete do secretário de Estado foi sempre agressiva, o que revelou que possivelmente não teriam sido incluídos na decisão da escolha desta medida para implementação, e levantou algumas suspeitas da nossa parte de que possivelmente haveria alguma outra razão para esta postura”.
Seguiram-se várias reuniões com os mesmos participantes: a 20 de julho, no mesmo local, juntaram-se à equipa elementos do IFAP (entidade gestora do SNIRA) e da DGAV (detentores do SNIRA).
A reunião [de 20 de julho] foi preenchida com discussão sobre as razões e motivos pelos quais a medida não poderia ser implementada ao invés de se trabalhar em conjunto nas soluções para que isso pudesse efetivamente acontecer.
“O processo de inovação implica tentativa e erro e, apesar de a medida na sua forma original não ser possível de concretizar de imediato, a Faarm tinha a flexibilidade para tentar e testar novas soluções”. Nesse dia e, apesar dos “entraves”, ficou agendada para setembro uma reunião técnica com o IFAP, “para discutir possibilidades de implementação e concretização da medida proposta, jurada e incluída no caderno Simplex”.
A 22 de setembro reuniram-se pela quarta e última vez. E, apesar de ter havido a certeza de que uma parceria com o SNIRA em termos de bases de dados seria complicada, Miguel conta que perceberam que era “possível criar bastante valor para produtores e organizações do setor com a utilização do histórico dos dados da base de dados atual”. A equipa da Faarm foi, nessa data, aconselhada a fazer um pedido formal de levantamento de informação ao SNIRA, feito de imediato, garante o CEO da startup. A resposta seria recebida pela empresa sete meses e meio depois de enviado o pedido, a 4 de maio de 2017, sendo que a medida teria de estar implementada a 31 de maio. Na carta de resposta, e após um parecer da DGAV, a Faarm foi informada de que “não seria possível disponibilizar qualquer informação que identificasse uma exploração sem consentimento do beneficiário”.
Graça Fonseca foi acompanhando todo o processo de perto. “O meu balanço não é negativo porque conseguimos pôr estes dois mundos em contacto para percebermos as resistências e necessidades, e ultrapassá-las“, explica a secretária de Estado, acrescentando que talvez os resultados tenham, ainda assim, ficado aquém das expectativas dos empreendedores. “Quando falamos em desenvolver um produto para o Estado estamos a falar de um setor que é ainda olhado com desconfiança. Queremos que esse gap diminua e que a mensagem importante que passa seja que, se num Estado que é complexo, uma app consegue implementar-se no setor público, terá certamente sucesso no mesmo setor privado”, garante.
A 19 de maio, a Faarm recebia o ficheiro com informação incompleta de alguns animais da região do Alentejo: da informação solicitada, em 41 pontos de dados, a startup recebeu apenas número do brinco, data de nascimento, raça e sexo de cada animal. “Em 37 pontos de dados com parecer jurídico favorável foram enviados quatro pontos de dados, e de um número reduzido de animais. O IFAP dava assim por concluída a medida e remetia-se ao silêncio”.
“Com parecer jurídico favorável é possível correr a tecnologia e analisar estatisticamente milhões de pontos de dados sobre o ciclo de vida de cada animal, desde a criação da base de dados do SNIRA, conhecendo a história e evolução do sistema até ao dia do descarregamento, produzindo inteligência suficiente para ajudar os produtores portugueses a ganhar uma vantagem competitiva internacional, e ajudando também o Estado a modernizar a sua tecnologia e processos. Ficaria assim cumprida o possível da medida Simplex e a vaca, de alguma forma, voaria”, diz Miguel.
213 de 255
As conclusões do primeiro Simplex+ foram apresentadas a 24 de junho deste ano. Graça Fonseca detalha que, durante os dez meses em que decorreu o desenvolvimento dos projetos, foram identificadas necessidades relacionadas sobretudo com acesso a dados que poderiam ser obtidos na administração central.
Um dos problemas existentes é a desconfiança entre jovens empreendedores e cidadãos em relação à administração pública. São muito difíceis de ultrapassar.
A ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, apresentou o balanço da edição: das medidas previstas até maio, a taxa média de execução era de 74% [após 10 meses de Simplex+], com 213 das 255 medidas inscritas no Simplex+2016 concretizadas até junho de 2017 e, estando previstas as restantes 42 para estarem terminadas até março de 2018.
“Por incrível que pareça, a medida proposta pela Faarm está dada como cumprida no caderno do Simplex, sendo que o objetivo inicial era a produção de um integrador. E o Ministério assume como indicador de sucesso ter ajudado a Faarm na integração com a Administração Pública, facto que nunca esteve sequer próximo de acontecer”.
Graça Fonseca defende que o essencial foi feito: “Conseguimos mobilizar pessoas dos Ministérios que interessavam a casa um dos casos, chegar à fala com os responsáveis. E sobretudo, obrigar a administração pública a abrir-se a jovens programadores e empreendedores. Mas o nosso papel não é substituir o mercado: que tem de convencer o mercado a comprar a solução são eles. Se não conseguimos convencer os nossos eventuais clientes, é indiferente com quem reunimos antes“, justifica.
"A questão destas startups passa muito pelo processo e estratégia de entrada no mercado: no ‘how to go to market’.”
No caso da FireRisk, outra das vencedoras, o processo também não correu sobre rodas apesar do balanço positivo feito pelo Governo. “Tudo tem a ver com expectativas”, assinala Teresa Fonseca, cofundadora e responsável pela comunicação da FireRisk, outra das três vencedoras do concurso Startup Simplex. “Naquilo que foi o pós projeto e, em termos de ação articulada com a secretaria de Estado e com a administração central, quando apresentámos a app já tinha um desenvolvimento elevado. A nossa expectativa era que o produto pudesse agilizar de forma os procedimentos da administração pública. E, a partir de um momento, deixou de haver a execução que esperávamos”, analisa.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Startup Simplex. A vaca voadora perdeu as asas?
{{ noCommentsLabel }}