Regras opacas para consultores deixam Centeno sob pressão

Prática de designação de ex-membros do Conselho de Administração ou quadros do banco em altos cargos não é nova. Falta de transparência no processo leva governador ao Parlamento.

A opacidade em torno da figura de ‘consultor’ do Banco de Portugal (BdP) e das respetivas condições remuneratórias e funções está a colocar a instituição sob pressão e vai mesmo obrigar Mário Centeno a dar explicações detalhadas no Parlamento. A lei orgânica do regulador bancário e o acordo da empresa são omissos sobre o tema e o banco central tem-se escusado a dar esclarecimentos. O rastilho da polémica acendeu-se com o anúncio de Hélder Rosalino, administrador do Banco de Portugal até setembro de 2024, para secretário-geral do Governo. Após a desistência da função que não chegou a assumir, o quadro do supervisor manteve-se na instituição com o estatuto de ‘consultor’ – em termos formais, é diretor — até ser nomeado na quarta-feira administrador da Valora, empresa detida pelo BdP e que imprime as notas.

A prática da nomeação de ‘consultores’ da Administração não é nova e não é exclusiva do mandato de Mário Centeno ou de Carlos Costa, o anterior governador. Quando um quadro do BdP abandona o Conselho de Administração ou regressa ao banco central após ter sido destacado para altos cargos – como ministro das Finanças ou para a administração de outros reguladores -, tradicionalmente passa a exercer as funções de ‘consultor’.

A figura faz parte do organograma do site do Banco de Portugal, embora não tenha qualquer descrição ou detalhes associados. Um antigo membro de conselho de administração do supervisor garante que, no passado, um ‘consultor’ poderia e deveria assumir funções de direção de departamento quando tal se verificava adequado ao perfil. E citou o exemplo de Vasco Pereira, ex-presidente do IGCP que passou ao estatuto de ‘consultor’ e foi depois diretor do Departamento de Supervisão Prudencial e Secretário Geral da instituição. “Os colaboradores classificados como ‘consultores’ são aqueles que, antes de integrarem o Conselho de Administração do BdP ou antes de serem destacados para outras funções, já tinham atingido o topo da carreira“, assinala a mesma fonte, que pediu o anonimato. E assegura que, pelo menos no passado, os procedimentos estavam padronizados.

No entanto, questionado pelo ECO sobre quantos consultores tem, quantos fizeram parte do Conselho de Administração e que tarefas lhes competem, o Banco de Portugal remeteu para a Lei Orgânica, que define as competências, atribuições e regras de funcionamento do Conselho de Administração e enquadra as regras a que estão sujeitos os seus trabalhadores. Só que a Lei não faz qualquer referência ao tema.

O capítulo dedicado ao quadro de pessoal define que os trabalhadores estão sujeitos às normas do regime jurídico do contrato individual de trabalho e que o banco pode celebrar instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, nos termos da lei geral. Prevê ainda que “o Conselho de Administração, tendo em atenção a natureza específica das funções cometidas ao Banco, definirá a política de pessoal, após audição dos órgãos institucionais de representação dos trabalhadores” e “compete ao conselho organizar os instrumentos adequados à correta execução e divulgação da política de pessoal”.

Fonte: Banco de Portugal

O ECO consultou ainda o acordo de empresa do Banco de Portugal, no qual estão descritas as funções dos trabalhadores do banco, como diretores, coordenadores, técnicos, entre outros, e a tabela salarial aplicável aos trabalhadores. No entanto, neste documento também não existe qualquer referência ao tema. Questionado pelo ECO sobre se a decisão segue regras não escritas, o Banco de Portugal não respondeu até à publicação deste artigo.

De acordo com informações recolhidas pelo ECO, o número de ‘consultores’ tem flutuado ao longo do tempo. Entre os exemplos inclui-se o do próprio Mário Centeno, que após abandonar o cargo de ministro das Finanças foi temporariamente ‘consultor’ da instituição de onde é quadro, até ser nomeado governador. Foi também o caso de Vítor Gaspar ou de Vítor Bento, mas também de Rui Cartaxo, que, como ‘consultor’, coordenou o Livro Branco sobre a regulação e supervisão do setor financeiro, publicado em 2016, na sequência da crise financeira e do processo que conduziu à aplicação da medida de resolução ao Banco Espírito Santo (BES), ou de Manuel Sebastião, ‘consultor’ entre 1996 e 1998 e entre 2013 e 2015, após ter exercido funções de presidente da Autoridade da Concorrência (AdC). Do atual leque faz também parte Ana Cristina Leal, que chegou a ser diretora do Departamento de Estudos Económico do Banco de Portugal, foi nomeada administradora da Caixa Geral de Depósitos (CGD) em 2013 e quando regressou ao supervisor teve como responsabilidade o departamento de Estabilidade Financeira, cargo que abandonou, passando a ser ‘consultora’.

Não é diferente do que acontece noutros locais. Estamos a falar de pessoas muito séniores, com competências muito específicas. Não há nada de específico a não ser que passam a estar no topo da carreira se fizeram parte da Administração”, disse ao ECO fonte do setor financeiro.

A carreira aplicada aos trabalhadores mais antigos do Banco de Portugal tem 18 níveis remuneratórios, com o mais alto a ter três categorias, enquanto a atual, posterior a 2009 e com descontos para a Segurança Social, tem 25 níveis, divididos em dois grupos (A e B). Foi precisamente o nível 18 que Hélder Rosalino terá atingido quando deixou o Conselho de Administração, ficando no mesmo patamar que Mário Centeno e Luís Máximo dos Santos. A progressão na tabela remuneratória é também comum quando um quadro do supervisor é destacado e regressa ao banco, seguindo normalmente a promoção aplicada aos pares no período de ausência. Mas não são claros os critérios e prazo de promoção. Um antigo diretor do Banco de Portugal admitia uma promoção, em média, a cada três anos, mas outro quadro do banco, que também já saiu, apontava para um período entre quatro a cinco anos. “Em termos de promoções/progressões, em situação normal, um funcionário é promovido em média em 4/5 anos em meio nível”, apontou. E revelou também que há majorações salariais face ao valor de entrada em cada nível para os quadros em função do nível académico e isenção de horário.

O governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, durante a conferência de imprensa para apresentação do Relatório de Estabilidade Financeira de maio de 2023, no Banco de Portugal, em Lisboa, 10 de maio de 2023. ANDRÉ KOSTERS/LUSAANDRÉ KOSTERS/LUSA

No entanto, a falta de esclarecimentos levou os deputados da Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública (COFAP) a chamarem com caráter de urgência Mário Centeno ao Parlamento, que poderá fazer-se acompanhar pela administradora Helena Adega, com quem divide a tutela do departamento de Pessoas e Estratégia Organizacional, caso o entenda. O pedido de audição surge na aprovação de um requerimento do Chega, e segundo indiciado pelos partidos na discussão do pedido, Centeno deverá ser questionado sobre o número de trabalhadores nesta situação e quando e por que razão surgiu, bem como os seus salários.

Gastos com pessoal caíram seis milhões em 2023

O valor de gastos com pessoal do Banco de Portugal caiu seis milhões de euros, em 2023, para 125 milhões de euros, de acordo com o relatório do Conselho de Administração. O número de trabalhadores em efetividade de funções no banco a 31 de dezembro desse ano era de 1.633 trabalhadores, quando na mesma altura de 2022 era de 1.642 trabalhadores.

A remuneração do governador e do Conselho de Administração está neste bolo. Em 2023 e 2024, o Governador do Banco de Portugal auferiu mensalmente 17.647,74 e 18.177,18 euros, respetivamente, o vice-governador 16.544,76 e 17.041,11 euros e um administrador 15.441,78 e 15.905,04 euros. A atualização de salários seguiu a atualização salarial de 1% e de 3%, aplicada aos funcionários públicos, prática que o banco central segue desde 2020, após a eliminação progressiva em 2016 da redução dos salários aplicada durante a Troika.

O ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, irá convocar uma reunião da comissão de vencimentos do Banco de Portugal para avaliar a política salarial do regulador bancário. A última reunião da comissão de vencimentos do supervisor bancário realizou-se há mais de uma década. Esta é composta pelo Ministro das Finanças ou um seu representante, que preside, pelo presidente do Conselho de Auditoria do Banco de Portugal, Óscar Manuel Machado Figueiredo, e por um antigo governador, designado para o efeito pelo Conselho Consultivo, liderado por sua vez pelo atual governador, Mário Centeno. É precisamente pela indicação deste nome que o Ministério das Finanças aguarda para marcar a reunião, sabe o ECO.

Fonte: Banco de Portugal

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