57 audições depois, terminou o inquérito ao Novo Banco com algumas conclusões, dúvidas e casos polémicos. Relatório final, a cargo do deputado do PS Fernando Anastácio, será conhecido no próximo mês.
Quase seis dezenas de audições. Mais de 160 horas de inquirições. Vários depoimentos por escrito. Os últimos três meses foram uma correria para a comissão de inquérito ao Novo Banco ouvir os principais intervenientes desde a resolução do BES até à venda ao Lone Star e à gestão de António Ramalho. O relatório final, a cargo do deputado socialista Fernando Anastácio, será conhecido já no próximo mês. Ficam as principais conclusões, as dúvidas que continuam por esclarecer e as polémicas de mais um inquérito do Parlamento à banca (o décimo).
Atuação enérgica do BdP teria minimizado problemas no BES
O inquérito às perdas do Novo Banco começou a todo o gás com a audição ao autor do relatório secreto sobre a atuação do Banco de Portugal e do ex-governador Carlos Costa na queda do BES. Segundo João Costa Pinto, antigo vice-governador, uma intervenção mais “enérgica” e atempada teria evitado ou minimizado os problemas no banco que foi resolvido em agosto de 2014.
As revelações não ficaram por aqui e a primeira audição desta comissão de inquérito até acabou por ajudar a minorar a questão em relação à divulgação do chamado relatório Costa Pinto, ainda que o Parlamento se tenha esforçado por tornar o documento público, mas sem sucesso após decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
Por exemplo, avisos sobre limites aos grandes riscos foram ignorados pelo Banco de Portugal, isto é, o BES ultrapassava “sistematicamente” os limites dos grandes riscos ao expor-se em demasia à área não financeira, mas olhou-se para o lado, concluiu o relatório. Os técnicos do supervisor também deixaram alertas sobre a complexidade que era vigiar e fiscalizar o GES, mas a nota que produziram terá sido ignorada internamente. Outra conclusão: havia dispositivos legais para tirar Ricardo Salgado mais cedo da liderança do banco.
Em resposta, o Banco de Portugal recusou as conclusões “deslocadas” do relatório Costa Pinto, com Carlos Costa a apontar para “problemas de consistência interna” do relatório e o antigo diretor-adjunto de Supervisão Prudencial do Banco de Portugal Pedro Machado a falar em “fragilidades jurídicas”.
Em relação a Salgado, o ex-governador recusou qualquer atitude de complacência com o ex-líder do BES, sendo que uma intervenção do supervisor para afastá-lo do banco poderia colocar em causa a estabilidade financeira. Costa Pinto também concluiu isso, mas defendeu que devia ter existido suporte público, o que não aconteceu.
Novo Banco nasceu com “capital à pele” e tinha “cesto de fruta podre”
Não faltaram expressões para dar contexto às dificuldades que o Novo Banco teve logo no seu berço. Era “um paciente em cuidados em intensivos” ou “um nado morto ou um morto vivo”, como disse o ex-administrador José Honório. O problema: não havia mecanismos para recuperar o paciente.
Os primeiros dias de vida do Novo Banco foram um dos principais temas abordados pelos deputados, nomeadamente a capitalização inicial de 4,9 mil milhões de euros — escusado será de dizer que esse capital foi manifestamente insuficiente, pois basta olhar para as injeções que o banco tem recebido nos últimos anos pelo Fundo de Resolução.
O último CEO do BES e primeiro CEO do Novo Banco, Vítor Bento, chegou a usar uma expressão que resume bem o que aconteceu: “O capital dotado estava demasiado à pele”, disse Vítor Bento.
Por que razão não se meteu mais dinheiro inicialmente? O Banco de Portugal queria mais dinheiro: 5,5 mil milhões de euros. Mas terá sido travado após uma reunião no Ministério das Finanças, então liderado por Maria Luís Albuquerque. Os vários intervenientes no processo deixaram ainda outra razão: as regras europeias que limitam a capitalização ao mínimo possível. E assim se fixou o valor 4,9 mil milhões, que foi o dinheiro suficiente para o banco cumprir os rácios regulamentares naquela altura.
Cedo os ex-responsáveis do banco perceberam que ia ser preciso mais dinheiro para manter o banco em atividade e para fazer face às perdas com ativos problemáticos que ainda estavam por vir nos anos a seguir.
O governador Carlos Costa falou mesmo em “cesta de fruta parcialmente apodrecida” para se referir a um conjunto a grandes créditos tóxicos que em 2014 ainda não estavam em incumprimento (sobretudo por causa de reestruturações), mas os quais já denotavam fortes sinais de default.
Essas perdas viriam a materializar-se sobretudo depois da venda do Novo Banco ao fundo Lone Star, obrigando o Fundo de Resolução a ser chamado para cobrir as perdas e a repor os rácios.
Houve vendas ao desbarato? Bruxelas não facilitou
Não houve uma conclusão evidente em relação a esta pergunta. O que se sabe é que o Novo Banco teve perdas milionárias com a venda de crédito malparado, de imobiliário e da seguradora, obrigando o Fundo de Resolução a compensar esses prejuízos em grande medida.
Vários intervenientes tentaram justificar o que aconteceu nos últimos anos: se o banco é obrigado a vender ativos já de si problemáticos e num curto período de tempo, a tendência é que o mercado se aperceba dessa pressão e acabe por aproveitar-se dessa situação e baixe o preço das suas ofertas.
“Quando se avança para um fire sale, vendas apressadas, tudo muda. As perdas de valor são imediatas. (…) Quando se decide agregar em pacote créditos em que se misturam alhos e bugalhos, coisas boas e más, é receita para o desastre”, afirmou João Costa Pinto. As perdas podiam ter sido evitadas, assegurou.
Mas havia alternativa? Talvez não, por determinação da Comissão Europeia e da DG-Comp, a autoridade de concorrência da Europa. Carlos Costa deu conta de várias divergências que teve com as autoridades europeias, por estas imporem uma “agenda preocupada com a aceleração de limpeza do banco”.
Da Europa vieram imposições para fazer baixar o malparado da banca para menos de 5%, sendo que o sistema português chegou a apresentar um rácio de 17% em 2016. Vários bancos fizeram o mesmo que o Novo Banco e a conclusão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) foi de que o banco de António Ramalho “não foi o campeão em todas as desvalorizações”.
E vendas com partes relacionadas?
As auditorias levantaram dúvidas sobre se o Novo Banco andou a fazer negócios diretamente com o seu acionista americano Lone Star. E os deputados questionaram diretamente os responsáveis do fundo texano: compraram ativos ao banco?
Byron Haynes, presidente do conselho geral e supervisão do Novo Banco, afastou qualquer conflito de interesses nas vendas de carteiras de malparado e imobiliário.
“Foi um processo muito robusto [referindo-se à carteira Sertorius], como todas as vendas de carteiras e de ativos”, assegurou Haynes, adiantando que “houve uma avaliação independente” que confirmou que “todas as questões relativas a ‘conhece o seu cliente’ e partes relacionadas foram analisadas e avaliadas”.
O Fundo de Resolução também rejeitou vendas do banco à Lone Star, ainda que o acordo permita esse tipo de negócios, desde que o fundo liderado por Máximo dos Santos autorize a operação.
Banco acelerou imparidades após a venda em 2017?
Foi outra das questões: o Novo Banco acelerou o registo de imparidades após a venda assinada em outubro de 2017? E registou imparidades a mais?
O diretor do departamento de risco global, Carlos Brandão, rejeitou que o banco tivesse acelerado o registo de imparidades (para maximizar os pedidos ao Fundo de Resolução) com o novo dono americano, embora os dados que revelou no Parlamento apontem noutro sentido: foram registadas imparidades de quase 600 milhões de euros por ano entre 2014 e 2016 e de 800 milhões por ano entre 2017 e 2020.
Por outro lado, o presidente da comissão de acompanhamento, José Bracinha Vieira, admitiu que em alguns casos de exceção as imparidades constituídas pelo banco foram “excessivas”, mas que a generalidade das imparidades teve por base “factos objetivos” e “critérios minuciosos” e sem discriminação entre ativos do CCA e fora do CCA.
Bracinha Vieira disse que “a limpeza de balanço foi tão forte” que o Novo Banco vai reverter imparidades futuramente, na ordem das “boas dezenas de milhões de euros”.
Sobre este tema, o secretário-geral do Fundo de Resolução, João Freitas, anunciou que foi fechado um acordo com o Novo Banco relativamente a títulos de dívida do Banco Económico (ex-BES Angola) e as imparidades revertidas serão devolvidas ao fundo.
Novo Banco tentou acelerar pedidos ao Fundo de Resolução?
O Novo Banco disse que fez uma gestão normal dos ativos, argumentando que não fez uma distinção entre ativos do CCA e fora do CCA, mas o Fundo de Resolução e o Governo disseram que o banco tentou acelerar os pedidos.
O presidente do Fundo de Resolução afirmou que o Novo Banco procurou tirar partido do mecanismo de capital contingente quando tentou aplicar as normas contabilísticas internacionais IFRS9 em pleno, abandonando o regime de transição, numa decisão que afetaria as chamadas de capital. “Não querendo, esse impacto tem imediatamente efeito nas contas. Não consigo vislumbrar um motivo atendível para esta conduta, não consigo encontrar outra explicação para um banco carente de capital e que vai com esse ato consumir [capital]. Só encontro uma: é apressar-se a fazer isso enquanto o CCA [o mecanismo de capital contingente] pode vir a ser usado”, afirmou Máximo dos Santos. Esta questão está agora em disputa no tribunal arbitral.
O ministro das Finanças também deixou uma bicada à gestão de António Ramalho por querer aproveitar-se da garantia pública. Mas aqui a questão foi outra: a venda da operação espanhola. Para João Leão, foi “inaceitável” e “incorreto” a tentativa do banco de maximizar as chamadas de capital com a operação de venda da sucursal em Espanha. “Achamos inaceitável essa tentativa de o Novo Banco de pretender, ao mesmo tempo, beneficiar nas suas contas de 2020 da venda de Espanha e chamar capital superior e depois ter benefício com a redução das necessidades de capital em 2021”, afirmou.
São os contribuintes que pagam as injeções do Novo Banco?
Para o Tribunal de Contas, sim: os financiamentos do Fundo de Resolução no Novo Banco são “dinheiro público” e “oneram os contribuintes”. “Qualquer cêntimo que entra no Estado é público. Sempre que um cêntimo entra numa entidade pública é um cêntimo público”, lembrou o presidente do tribunal, José Tavares, no Parlamento, lembrando que o fundo liderado por Máximo dos Santos, embora financiado por contribuições dos bancos, está no perímetro público.
A auditoria do Tribunal de Contas acabou por marcar o inquérito, sobretudo por causa das observações críticas que apontou sobre o funcionamento do mecanismo de capital contingente. Como por exemplo: o Fundo de Resolução está a pagar perdas que não são geradas pelo conjunto dos ativos CCA (acordo de capital contingente) quando está a ser chamado a repor os rácios de capital do banco; e não se salvaguardou o erário público com a solução encontrada.
Estas observações foram bastante disputadas na comissão de inquérito, com grande parte dos deputados a darem razão ao Tribunal de Contas com o Banco de Portugal e o Fundo de Resolução do outro lado.
Em relação ao custo para os contribuintes, o supervisor frisou que os empréstimos do Fundo de Resolução serão reembolsados a longo prazo, pelo que o impacto público é neutro. Também contestou a ideia de que se está a pagar ao banco além do que é devido, na medida em que os pagamentos ao Novo Banco são inferiores às perdas do Novo Banco com os ativos CCA. E que a venda do Novo Banco e a criação do mecanismo de capital contingente protegeram a estabilidade financeira, logo, defendeu-se o interesse público de consequências desastrosas.
António Ramalho também enviou uma carta à comissão de inquérito para defender que a sua gestão tem contribuído para baixar os pedidos ao Fundo de Resolução. Se a gestão do banco pode “influenciar decisivamente as chamadas de capital”, “tal só é verdade para a redução das referidas chamadas de capital”, defendeu o presidente executivo do Novo Banco.
No final, todos concordaram em discordar.
Fundo de Resolução vai injetar mais dinheiro no Novo Banco?
Até hoje, o Fundo de Resolução já compensou o Novo Banco, ao abrigo do mecanismo de capital contingente, em 3,3 mil milhões de euros (sendo que ainda há uma parcela de 116 milhões por aprovar). E a questão que se põe nesta altura já não é se o banco vai pedir os 3,9 mil milhões da garantia pública, até porque está próximo de chegar a esse limite.
Embora o banco estime resultados positivos este ano, isto não significa que não venha a fazer novo pedido no próximo ano. António Ramalho já falou num montante de cerca de 100 milhões de euros que a instituição poderá pedir no próximo ano, devido a questões relacionadas com a aplicação das regras de contabilidade internacionais IFRS9.
O ministro das Finanças deixou um aviso, entretanto. “Esperamos mesmo que não haja mais chamadas de capital”, disse João Leão, lembrando, contudo, que o acordo de capital contingente é válido até 2026 e o banco pode pedir dinheiro até lá, mediante o cumprimento dos requisitos.
Apesar de tudo, ainda há várias questões em aberto: as disputas entre o Novo Banco e o Fundo de Resolução (no valor de 330 milhões), a eventual utilização dos 1,6 mil milhões do “capital backstop”, uma rede de segurança que visa proteger o banco num cenário adverso, mas que o ministro e o governador já disseram que será muito improvável que venha a acontecer. E há depois os litígios relacionados com a resolução do BES e cujas faturas que cheguem ao Novo Banco terão de ser pagas pelo Fundo de Resolução — a auditoria do Tribunal de Contas revelou que a Lone Star já pediu compensações de 12 milhões por causa disto.
Afinal havia outra (capitalização)
Além das capitalizações por via do Fundo de Resolução, o Novo Banco já foi reembolsado pelo Estado em mais de 250 milhões de euros por via do regime dos ativos por impostos diferidos (DTA, na sigla em inglês). Trata-se de um mecanismo que permite aos bancos contabilizarem um direito económico a receber no futuro por conta de perdas com ativos no passado.
Por causa dos créditos tributários dados ao Novo Banco, o Estado arrisca-se a ficar com cerca de 15% do banco, com a participação de 25% do Fundo de Resolução a ser diluída. Ou seja, independentemente da conversão ou não dos créditos tributários em capital, a posição do acionista Lone Star estará sempre protegida.
O ex-secretário de Estado Adjunto e das Finanças Ricardo Mourinho Félix explicou na comissão que esta questão foi abordada no momento da venda ao fundo americano. A DG-Comp impôs que entidades públicas não podiam ter mais de 25% do Novo Banco. Por outro lado, se fosse para diluir a posição do Lone Star, os americanos teriam pago menos para comprar o banco, esclareceu Mourinho Félix.
Mas vai o Estado tornar-se acionista do Novo Banco? É uma questão que vai ser analisada, garantiu o ministro das Finanças.
Já Máximo dos Santos reconheceu que, se isso vier a acontecer, será uma má notícia para os bancos, pois complica a situação financeira do Fundo de Resolução. Isto porque o fundo conta com uma futura venda do Novo Banco para devolver os empréstimos ao Estado e à banca, pelo que não é indiferente entre ter 25% ou 10% das ações do banco na sua posse.
Aliás, em relação aos empréstimos pedidos pelo Fundo de Resolução, o ministro das Finanças adiantou que os financiamentos mais recentes do Estado deverão ser pagos depois da data prevista, 2046, o que implicará que os bancos terão de financiar o Fundo de Resolução por mais tempo.
Devedores culpam e fintam Novo Banco
Quem não se lembrou do episódio com Joe Berardo há dois anos no inquérito à Caixa, que se riu perante as perguntas dos deputados e disse: “Pessoalmente não tenho dívidas”?
As audições aos grandes devedores do Novo Banco também causaram indignação pública, por se recusarem a assumir as dívidas milionárias e atirarem as culpas para o banco. As audições aos grandes devedores do Novo Banco também causaram indignação pública, por se recusarem a assumir as dívidas e atirarem as culpas para o banco. Mas também saltou à vista outra conclusão (que, de resto, já a auditoria da Deloitte tinha dado conta): alguns clientes fintaram o banco, escondendo os seus ativos para evitar que fossem executados.
A audição com o fundador da Ongoing foi a mais turbulenta: os deputados acabaram abruptamente com a inquirição ao fim de 50 minutos, em nome da dignidade do Parlamento, após Nuno Vasconcellos ter apresentado a sua “narrativa” de defesa em vez de responder às perguntas. “Quem tem dívidas é a Ongoing”, disse Vasconcellos, que não deixou de atirar culpas para o Governo e deixar críticas aos políticos. Rafael Mora, ex-sócio de Vasconcellos, acusou-o de ter desviado ativos para o Brasil.
Moniz da Maia (Sogema) e João Gama Leão (Prebuild) também foram ao Parlamento com a mira apontada ao Novo Banco, que foi o grande responsável pela queda dos seus grupos e, consequentemente, pelas dívidas que se tornaram impagáveis.
“Vou ser direto: a dívida ao Novo Banco é da minha responsabilidade. A queda do meu grupo aí é que já desconfio da minha responsabilidade. (…) Não fui eu que peguei num assalto do BES e o transformei num problema público”, disse Gama Leão. O administrador da Sogema disse que as empresas do grupo foram “afogadas” e “estranguladas” pelo Novo Banco.
Para Luís Filipe Vieira, a sua ida ao Parlamento deveu-se ao facto de ser presidente do Benfica e não tem nada a ver com as dívidas de mais de 400 milhões do seu grupo Promovalor, dedicado à promoção imobiliária. Vieira, que disse que tem uma boa reforma e que vive bem, sublinhou que a reestruturação dos créditos da Promovalor – muito criticada pelo Banco de Portugal — era a única saída para o banco poder reaver o dinheiro, só que isso não vai acontecer nos próximos anos.
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Inquérito ao Novo Banco chegou ao fim: 10 conclusões, dúvidas e polémicas após 160 horas de audições
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