A uma semana da entrega do Orçamento do Estado, o fiscalista Luís Marques da EY antecipa, em conversa com o ECO, que a carga fiscal não deve diminuir, porque o Governo não tem margem para tal.
Em 2019, as famílias portuguesas não deverão sentir um alívio fiscal significativo. Isto porque o Executivo de António Costa já não tem muita margem para descer impostos. Quem o diz é Luís Marques, partner da EY e especialista em consultoria fiscal. A menos de um mês da entrega do Orçamento do Estado para o próximo ano em São Bento, o consultor, em entrevista ao ECO, antecipa o que será apresentado pelo Governo e sugere medidas alternativas, como a diferenciação dos impostos aplicados ao património para imóveis usados para arrendamento urbano.
Costuma dizer que a cada Orçamento parece haver uma reforma fiscal. Espera grandes alterações a esse nível no Orçamento do Estado para o próximo ano?
Não há elementos objetivos que permitam ainda dizer isso com muita clareza e objetividade. Esperaria que não. É um desejo aspiracional que, de facto, não ocorram muitas alterações. Pelo que tem vindo a público são expectáveis algumas alterações, nomeadamente a nível do IRS, mas não podem ser classificadas como algo muito reformista.
Este Orçamento vai ser eleitoralista?
Sempre que há um Orçamento num ano pré-eleitoral, pode haver alguma tentação — qualquer que seja o Governo — de colocar menor pressão fiscal sobre as empresas e especialmente sobre as famílias, que são quem vai votar nas eleições. É possível que se possa tirar essa ilação, dependendo das medidas que vierem a ser propostas e incluídas na proposta de lei do Orçamento do Estado, mas não tenho nada que me possa indicar que este vai ser um Orçamento eleitoralista até porque o Executivo apontou uma meta orçamental bastante ambiciosa.
Não creio que a carga fiscal como um todo vá sofrer muito, porque, de acordo com o que temos vindo a assistir, sempre que há uma medida de alívio fiscal ao nível IRS, isso acaba por ser compensado com medidas fiscais ao nível do consumo.
Este é um Orçamento para a classe média?
Essa é de facto uma das dúvidas que ainda persiste. Recentemente fizemos um survey sobre o que é expectável, sobre o que o que as pessoas ambicionam ver no Orçamento do Estado. De facto, se alguns destes desejos aspiracionais forem contemplados pode haver um alívio, não só pela introdução de medidas como o quociente familiar — que pode ajudar as famílias numerosas com mais de dois ou três dependentes — mas também por uma eventual mexida nas deduções à coleta do IRS. Mas não creio que a carga fiscal como um todo vá sofrer muito, porque, de acordo com o que temos vindo a assistir, sempre que há uma medida de alívio fiscal ao nível IRS, isso acaba por ser compensado com medidas fiscais ao nível do consumo. A receita fiscal terá de ser compensada, porque, de facto, o Governo precisa das receitas para prosseguir a sua função de financiar o Orçamento do Estado.
Portanto, tira-se de um lado para se pôr no outro…
É provável. O Governo não tem muita margem para descer impostos. Ainda há pouco tempo vimos o aumento nominal das receitas fiscais, que se situam à volta dos 67 mil milhões de euros, mas em termos de peso face ao Produto Interno Bruto (PIB) estamos em níveis de 2015. O peso que a carga fiscal tem face ao PIB está em níveis de momentos em que se falava em aumentos brutais de impostos. Não há um aumento da carga fiscal face ao PIB, há aumento da receita em termos nominais, porque há crescimento económico. Portanto, não estou à espera que a classe média vá sentir bastante alívio, nem vá ter um aumento da sua fatura com impostos.
Quanto à proposta de um desconto fiscal para os emigrantes que queiram regressar, é relevante neste momento?
É uma medida que tem de ser bem explicada. Há duas vertentes nessa discussão. O país perdeu mão-de-obra, alguma qualificada, e se calhar faz sentido dar um incentivo ao retorno. Quando saíram de Portugal havia taxas de desemprego na ordem dos 17% e hoje o nível de desemprego está muito baixo. Portanto, é natural que se tente incentivar o retorno das pessoas que saíram do país, até porque determinados setores vão-se queixando com falta de mão-de-obra e de mão-de-obra qualificada. Numa perspetiva de equidade, e essa é a segunda vertente, para quem cá ficou coloca-se a questão: por que razão é que se deve premiar quem saiu, quando quem cá ficou sofreu o processo de aumento de impostos? Porque é que os que ficaram não têm também um incentivo quase equivalente? É uma discussão que passa muito por opções políticas. Entendo melhor um regime como o regime do residente não habitual, na medida em que premeia pessoas que estiveram fora do país e regressam para desempenhar as funções de valor acrescentado do que um regime mais generalista, que abarca tudo e todos, simplesmente por regressarem ao país.
Existe um certo cansaço de estarmos sempre a olhar para os escalões do IRS. Nunca consigo fazer um planeamento daquilo que é a minha carga fiscal num horizonte de cinco anos.
Ainda sobre o IRS, o que é que podemos esperar ao nível dos escalões?
Sinceramente, não estamos a antecipar que haja aí mudanças. Existe um certo cansaço de estarmos sempre a olhar para os escalões. Nunca consigo fazer um planeamento daquilo que é a minha carga fiscal num horizonte de cinco anos. É impossível, porque estamos sempre a falar e a mexer em questões fundamentais. Acredito mais em alterações que possam passar pela tipologia de deduções, como o quociente familiar.
De acordo com as contas da consultora, o Governo já conseguiu devolver a totalidade dos rendimentos que tinham sido cortados com o enorme agravamento de impostos?
Pelo menos, o grande aumento de impostos propiciado pelas sobretaxas já foi corrigido totalmente. Por outro lado, os escalões com os níveis de rendimentos mais elevados continuam a ter taxas muito elevadas, mesmo quando comparamos com outros países da União Europeia. Portanto, pela via dos escalões, com certeza que não foi. Já houve alguma correção, não totalmente. Já houve uma significativa melhoria da fatura que classe média pagava sobre o rendimento.
Num momento em que se antecipa o abrandamento da economia, tem reconhecido disponibilidade do Governo para acolher alterações fiscais em prol das empresas?
Penso que sim, o Governo está disponível, mas só em situações muito pontuais. Por exemplo, pode estar disponível para empresas que se instalem em zonas menos favorecidas. Eventualmente empresas que estejam na disposição de ir para o interior do país, onde a desertificação é uma realidade. Curiosamente o nosso survey revelava que mais de 90% dos inquiridos que achavam positivos estes incentivos, apenas 30% contemplaria a hipótese de instalar lá. Ou seja, por um lado, acham bem, mas “não é para mim”. Isto porque não basta premiar pela via fiscal a ida para as empresas para o interior, há que contemplar outros fatores: a qualidade das escolas, a qualidade do sistema de saúde, a comunicação, a mão-de-obra. Acredito também que haja uma dinâmica maior naquilo que é a tentativa de premiar ainda mais as empresas que invistam em atividades de investigação e desenvolvimento de novos produtos. Quanto ao IRC, este começa a ser um imposto muito consolidado, muito maduro e a margem para mexer é mais reduzida. Não são expectáveis grandes alterações ao nível do imposto sobre o rendimento das empresas.
Quanto a essa questão dos incentivos fiscais à fixação no interior, não pode estar em causa um problema ao nível de equidade fiscal?
Não. Claro que levanta problemas ao nível da equidade fiscal, porque estamos a falar do mesmo país. Mas é uma tendência adotada por outros países e que a própria Comissão Europeia incentiva. É uma medida para tentar resolver a própria falta de equidade que existe no país. Só se consegue ter um país equilibrado se todas as suas regiões tiveram mais ou menos as mesmas oportunidades e questões, e sabemos que isso não acontece. Portanto, o Governo se pretende atrair essas empresas, tem de lhes dar qualquer coisa; tem de lhes dar uma cenoura para que, de facto, reconheçam o mínimo de atratividade nessas zonas. A via fiscal garante alguma equidade na falta de equidade que existe por outro fatores.
A simplificação das obrigações fiscais é outra das exigências frequentemente feitas pelos empresários. Que medidas é que podiam ser tomadas para concretizar esse fim?
Há aqui um equilíbrio que se pretende sempre atingir. Por um lado, o Governo quer ter o maior controlo possível sobre as operações dos contribuintes e isso passa por fazer o cruzamento de dados e de informações. Esse nível de exigência torna o processo de compliance mais complexo para as empresas. Provavelmente, uma das medidas que as empresas gostariam tem a ver com a periodicidade com que têm de fazer envios de informação para a administração tributária. Ou seja, é preciso diminuir o nível de cadência do que se tem de enviar, enviando o mesmo. Além disso, há determinados reportes ao nível do IRC que são muito complexos do ponto de vista da densidade da informação, que dá muito trabalho às empresas. Por vezes, também fica a sensação de que envia muita coisa e não se percebe muito bem porquê.
Parece que começa a ser quase um crime ganhar dinheiro, qualquer que seja a forma como é gerado.
Os últimos meses foram recheados com propostas sobre o mercado imobiliário. O que pensa sobre a chamada Taxa Robles? Será eficaz no seu objetivo, isto é, travar a especulação imobiliária?
A primeira dúvida que tenho é: o que é especulação imobiliária? Parece que começa a ser quase um crime ganhar dinheiro, qualquer que seja a forma como é gerado. Não tenho nenhuma posição sobre a Taxa Robles. É uma decisão política que tem de ser tomada. Pelas últimas indicações que vamos tendo, o Governo discorda com a introdução de uma taxa que visa tributar adicionalmente algo que já está a ser tributado. Se avançarmos com a medida, temos de expandir esse conceito, porque não é só nos imóveis que se pode ganhar dinheiro. Dizia-me um amigo há pouco tempo que não via essa preocupação quando em 2008 se tinha menos valias brutais na venda dos imóveis, porque houve um ajustamento. Os imóveis eram vendidos a desconto. O que se está a conseguir hoje é recuperar — em alguns casos, não na totalidade — o que se perdeu durante esse anos, que foram duros para o setor.
Que medidas poderiam ser tomadas para travar essa bolha imobiliária que tem sido denunciada por várias forças políticas?
Fala-se que a Câmara e o Governo têm imensos imóveis devolutos que poderiam entrar no mercado e com isso aumentar a oferta. Porque a chamada especulação imobiliária, advém de uma coisa que é muito simples que é a lei da oferta e da procura. Portanto, quando há mais procura do que oferta, tende a aumentar o preço da oferta que existe. Sempre foi assim. O petróleo há uns anos estava nos 120 dólares e não se falava em especulação. Era o mercado a funcionar. Há muitos alertas sobre se isto é de facto outro fenómeno de bolha imobiliária, a única dúvida que tenho é: a bolha que aconteceu em 2007, 2008 era muito motivada por procura interna, ou seja, eram os portugueses estavam endividados na banca a comprar imóveis. Agora temos um outro fenómeno que alimenta muito esta procura, que são os estrangeiros que se querem estabelecer em Portugal e têm outro poder de compra. Não se sei se isto é uma questão de moda ou se veio para ficar, porque Portugal tem um conjunto de atributos muitos procurados como o clima e a segurança. Se queremos ser uma economia de mercado, não podemos criar entraves a quem se quer estabelecer em Portugal, porque isso tem sido, não vou dizer a salvação, mas uma lufada de ar fresco que o país tem tido em termos de captação de investimento exterior.
Daquilo que já se conhece, a medida apresentada pelo PSD fica colada à do BE?
Ambas visam criar uma tributação adicional sobre as mais-valias.
Mas há algo que as diferencie claramente?
Penso que, no essencial, não são muito diferentes. Podem, depois, ter alguns pormenores técnicos distintos, mas no final do dia, em termos substantivos, são muito idênticas. Por isso é que houve algumas vozes críticas ligadas da ala mais à direita que acharam esse um posicionamento estranho de um partido que normalmente é considerado pelo seu neoliberalismo e mais virado para a economia normal de mercado.
O PCP sugeriu que todos os tipos de rendimentos, incluindo os prediais, superiores a 100 mil euros devem ser incluídos no IRS. Faz sentido?
Essa medida é um bocadinho mais emblemática do que prática. Se a carga fiscal começar a subir de tal forma pode ter um efeito perverso que é deixar de haver investimento. Trazer para cima da mesa a tributação de todos os rendimentos que hoje em dia são sujeitos a taxas liberatórias pode desincentivar o investimento em ativos, como os prediais. É natural que esta medida que essa medida faça todo o sentido do ponto de vista retórico, mas do ponto de vista do mercado colocaria Portugal muito atrás no pelotão dos países que procuram captar investimento.
Dos que vendem aos que alugam, o PS sugeriu um desconto fiscal também para os contratos de arrendamento superiores a cinco anos e inferiores a dez anos. Trata-se de um abatimento de 3% da taxa de IRS. Será o suficiente para estimular o mercado de arrendamento em Portugal ou na prática não terá grande efeito?
Todas as medidas que incentivem o arrendamento são sempre melhores que a ausência das mesmas. O facto de essa proposta ter vindo para cima da mesa é positivo. Não sei se vai ser suficiente, porque hoje em dia continua a haver a ideia de que o preço que vou pagar numa prestação ao banco é o mesmo que pago a um senhorio. Daqui a uns tempos pode-se discutir se é suficiente, mas dá-se um passo pelo menos.
A não ser suficiente, que outras medidas poderiam ser adotadas nesse sentido?
Pode ser interessante aumentar o quantitativo dessa dedução. Poderia equacionar-se também diminuir o IMI que essas casas pagam por estarem a ser entregues a arrendamento urbano. Não estou a falar dos arrendamentos de curta duração, porque isso é uma atividade empresarial. Estou a falar de, se se afetar um imóvel ao arrendamento urbano para famílias que o usam como residência permanente, poderia fazer sentido olhar para os impostos sobre o património.
Sobre a eletricidade, o Governo está a pensar taxar as energias renováveis em vez de baixar o IVA, para reduzir a fatura da luz. É uma boa solução?
A taxa sobre as energias renováveis é algo que acaba por ser uma contradição face àquilo que tem sido discutido nos últimos anos, que é premiar quem investe neste tipo de energias. Se calhar alguém pensou em baixar o IVA, mas fizeram as contas… porque baixar de 23% ainda que fosse para a taxa intermédia, esses dez pontos percentuais devem ter um peso significativo. Se, de facto, vão querer estender a contribuição sobre o setor elétrico às empresas de energias alternativas, quem investiu a longo prazo vai ver as suas expectativas defraudadas. Vai ser confrontado com um custo que não tinha planeado. E isso leva-nos à tal falta de estabilidade fiscal, que muitas vezes é indicado como um dos aspetos que o sistema português tem de menos positivo.
Quer o agravamento da TSU, quer o bloqueio dos concursos públicos não seriam muito positivos, porque exigiriam a reestruturação das empresas, a não ser que reflitam esses custos nos preços dos seus produtos. Ou seja, podemos acabar todos a pagar a fatura.
Outro dos temas quentes destas negociações tem sido o da penalização das empresas com maiores disparidades salariais. Qual a sua opinião sobre as propostas já apresentadas, como o agravamento da TSU?
Custa-me a aceitar um bocadinho essas medidas. A gestão das empresas é a gestão das empresas e a gestão do Estado é a gestão do Estado. Uma coisa é certa: os empresários só remuneram bem quem lhes dá valor acrescentado. Tenho dúvidas de que seja uma medida que seja totalmente aceite pelo partido que encabeça o Governo, mas em sede de discussão pode haver cedências. Quer o agravamento da TSU, quer o bloqueio dos concursos públicos não seriam muito positivos, porque exigiriam a reestruturação das empresas, a não ser que reflitam esses custos nos preços dos seus produtos. Ninguém vai conseguir manter preços aumentando os custos da mão-de-obra, ou seja, podemos acabar todos a pagar essa fatura.
Nesse sentido, essas medidas podem acabar por incentivar a subcontratação e o encontro de relações laborais “mais criativas”?
Quem optar por essas vias está a fazer algo ilegal: é como em vez de contratar alguém, contratar alguém a recibo verde. Cada vez o cerco das autoridades competentes é maior. Mais do que fomentar práticas menos lícitas, estas medidas vão provocar o inflacionamento de preços de bens e serviços.
Antecipa mexidas significativas ao nível dos benefícios fiscais?
Incentivos fiscais às empresas que se instalem em zonas menos favoráveis e se calhar vamos olhar para os incentivos às empresas que investem na investigação. Pode acontecer um ou outro benefício fiscal ao nível do património, mas não sabemos. Estamos expectantes.
Tudo somado, perspetiva um aumento da carga fiscal neste Orçamento?
Acho que a carga fiscal, em termos nominais, vai continuar a seguir um ciclo de aumento. O que o Governo vai tentar gerir é que esse aumento, face ao PIB, não signifique um aumento da carga fiscal. É esse o desafio. Se houver crescimento económico, a carga fiscal tem inevitavelmente de aumentar.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Luís Marques da EY: “Governo não tem muita margem para descer impostos”
{{ noCommentsLabel }}