Nos termos do divórcio, quais as prioridades dos 27?
Não se afigura uma separação fácil, e o Conselho Europeu deste sábado vai servir para os países do bloco coordenarem discursos e trocarem preocupações. Conheça as quatro prioridades negociais da UE.
Este sábado, os líderes europeus com intenções de permanecer na UE encontram-se para afinar estratégias e acordar prioridades para o Brexit. O contexto é de incerteza, é verdade. As eleições francesas estão entre uma confusa primeira volta e uma incerta segunda, e Theresa May convocou outro ato eleitoral no Reino Unido para procurar maior legitimidade para o seu papel enquanto primeira-ministra, que só se decide a 8 de junho. Ainda este ano, Angela Merkel pode deixar de liderar a Alemanha. Mas, seja como for, é preciso decidir algumas prioridades — e muitas delas parecem já estar a ganhar forma, em especial do lado europeu.
O Conselho Europeu de hoje, que junta os líderes dos 27 para discutir e delinear o plano do que vem a seguir e criar um mandato que legitime a posição do negociador europeu — Michel Barnier — junto dos britânicos, parte já de documentos que Donald Tusk, o presidente do órgão, e a Comissão Europeia têm vindo a desenvolver. E algumas das posições, seja porque os documentos viram a luz do dia, seja porque os próprios líderes europeus as exprimiram publicamente, já são conhecidas. Quais, então, as prioridades da Europa?
Os direitos dos cidadãos
Foi o que António Costa começou por destacar no Parlamento depois do debate quinzenal desta quarta-feira, foi o que todos os partidos pediram, e parece ser também o que as assembleias pela Europa fora estão a pedir: garantias para os cidadãos europeus que vivem, estudam, trabalham ou fizeram família no Reino Unido.
Num documento preliminar da Comissão Europeia que foi obtido pelo site noticioso europeu Politico, lê-se: “O acordo de saída deverá fornecer garantias abrangentes, eficazes, aplicáveis e não-discriminatórias para estes cidadãos”.
Desde o referendo do Brexit que muitos cidadãos europeus no Reino Unido decidiram procurar conseguir autorizações de residência permanente no Reino Unido para não correrem o risco de ter de sair do país no final das negociações. No entanto, como destacou num artigo de opinião no The Independent a eurodeputada neerlandesa Sophie in ‘t Veld, as regras criadas para conseguir este estatuto envolvem o preenchimento “de um formulário de candidatura com 85 páginas, o que mostra que a União Europeia não tem o monopólio da burocracia”, e, mais ainda, “a informação é contraditória e os critérios são quase impossíveis de alcançar”.
Uma solução para estes cidadãos é prioritária para os governos dos 27, mas deverá também ser um ponto de negociação importante para o Reino Unido, cujos expatriados vivem em todos os países da União Europeia. O Financial Times propõe mesmo que Theresa May mostre “generosidade” concedendo passaportes britânicos a todos os estimados três milhões de europeus que vivem no Reino Unido, o que seria “administrativamente elegante” e deixaria ainda “os outros 27 membros da UE com um grande dilema sobre como se equipararem” a esta oferta.
Os problemas das fronteiras
Parte do Reino Unido é uma ilha, o que faz com que as questões de saída da União Europeia — e do seu espaço de livre circulação de pessoas, bens e serviços — possam parecer mais simples do que se um país completamente cercado por Estados-membros, como a República Checa, quisesse sair. No entanto, há duas fronteiras cruciais que têm de ser acertadas: Gibraltar e Espanha, e a Irlanda do Norte e a Irlanda.
Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, já apelou a que a União Europeia “procure evitar uma fronteira rígida entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte”, para proteger a paz. Líderes europeus que falaram ao The Guardian e ao Financial Times chegaram mesmo a mostrar abertura a que uma Irlanda do Norte unificada com a República Irlandesa pudesse ser automaticamente incluída na União Europeia — a maioria dos cidadãos da Irlanda do Norte votaram para permanecer na UE no referendo de junho do ano passado, e a atual fronteira permite que as pessoas e o comércio se movimentem sem problemas entre o norte e o sul da ilha.
"Gostaria que nos uníssemos com este princípio comum durante a próxima cimeira, para que seja claro que o progresso nos campos das pessoas, do dinheiro e da Irlanda tem de vir primeiro. ”
Vai ser difícil encontrar uma resposta que concilie a necessidade de uma fronteira pouco rígida entre as duas Irlandas, como é desejado por ambos os lados, e a exigência britânica de fecho de fronteiras à imigração e ao movimento livre de pessoas. Uma só Irlanda unificada também não parece muito provável — uma sondagem, citada pela CNN e realizada pelo instituto IPSOS em setembro na Irlanda do Norte, não mostrava grande apoio por essa solução.
Quanto a Gibraltar, o pequeno enclave britânico na Península Ibérica, a situação não é menos delicada. Quando há poucas semanas um antigo líder do partido conservador britânico trouxe à baila a ideia de uma guerra entre Espanha e o Reino Unido — “Há 35 anos, outra primeira-ministra mulher enviou uma armada para o outro lado do mundo para defender a liberdade de outro pequeno grupo de britânicos contra outro país hispanófono, e estou certo de que a nossa atual primeira-ministra mostrará a mesma capacidade de defender o povo de Gibraltar” — o caso rapidamente se tornou mais dramático. O Conselho Europeu respondeu de forma perentória: Espanha vai ter de concordar com qualquer solução encontrada para Gibraltar entre os negociadores de Bruxelas e os britânicos.
Quem sai primeiro paga a conta
Este é considerado um dos pontos mais divisivos dos documentos preliminares que já são conhecidos, mas parece ser também um dos mais certos. A Comissão Europeia quer que o Reino Unido pague não só as obrigações financeiras que ainda tem para com a União Europeia, estimadas em perto de 60 mil milhões de euros, mas também os próprios custos do processo de saída.
Os custos podem incluir mesmo as deslocações dos negociadores para reuniões sobre os termos do Brexit. “O Reino Unido deve cobrir totalmente os custos associados ao processo de retirada, incluindo a relocalização de agências ou outras instituições da União”, lê-se no documento acedido pelo Politico. Agências essas, como a do Medicamento e a autoridade bancária, que vão sair de Londres, por muito que os líderes britânicos peçam o contrário.
O deputado britânico Ben Bradshaw, do partido Trabalhista, criticou duramente a exigência de retirar as agências europeias de Londres, a que chamou um “pontapé nos dentes dos contribuintes britânicos”. Para Bradshaw, “o Governo deveria estar a lutar com unhas e dentes para manter estes empregos no Reino Unido, e para evitar problemas regulatórios ao procurar manter o Reino Unido nas agências que ajudam o nosso país”.
Quando se discute o acordo comercial?
Mais um tema em que cada lado puxa ferozmente para o que mais lhe convém. Theresa May, na sua carta enviada às autoridades europeias em que acionou oficialmente o Artigo 50 para dar início ao processo de saída da União Europeia, mencionou quatro vezes em seis páginas que “a parceria futura” deveria ser negociada ao mesmo tempo que a saída da União Europeia. Mas a Comissão e o Conselho Europeu discordam — e não é pouco.
Os documentos divulgados mostram que os termos da saída do Reino Unido devem estar acordados e escritos a caneta antes que se comece a falar na estrutura de uma futura relação comercial, que se espera tomar a forma de algum tipo de acordo de comércio livre.
“O Reino Unido agora está do outro lado da mesa das negociações”, disse recentemente Donald Tusk num encontro em Malta. “Quando, e apenas quando tivermos conseguido progresso suficiente na saída é que poderemos discutir as linhas diretivas da nossa futura relação”, concluiu, acrescentando que “provavelmente em outubro — ou pelo menos é o que se espera” estivesse concluída a primeira fase de negociações. Por agora, tudo começa este sábado, com os líderes dos 27 e algumas posições que quase certamente não vão mudar.
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