Inflação foi responsável por até 81% da redução do rácio da dívida em 2023

A redução do rácio da dívida pública face ao PIB para o valor histórico de 98,7% em 2023 deveu-se, em grande medida, ao efeito da taxa de inflação no crescimento do PIB.

Em 2023, pela primeira vez em 14 anos, a República apresentou um rácio de dívida pública abaixo dos 100% do Produto Interno Bruto (PIB). Além disso, no ano passado, pela segunda vez em 49 anos de Democracia, o país registou uma queda absoluta da dívida do Estado.

No decorrer da apresentação destes resultados, Fernando Medina explicou que tudo isto foi apenas possível devido a “muitas circunstâncias”, com destaque para o “crescimento da economia e emprego”. No entanto, os números recentemente divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam que a redução da dívida pública de 112,4% do PIB em 2022 para 98,7% do PIB em 2023 deveu-se sobretudo ao efeito da inflação nas contas nacionais.

Segundo contas do ECO, a inflação foi responsável por até 81% da redução da queda do nível de endividamento do Estado no ano passado. Da redução de 13,7 pontos base do rácio de dívida face ao PIB registada em 2023, 11,7 pontos base foram gerados somente pelo efeito individual da taxa de inflação.

Isto significa que mesmo que a economia nacional tivesse registado um crescimento nulo em vez de ter crescido 2,3% no ano passado, o rácio da dívida pública face ao PIB cairia para 101,25%, apenas pelo efeito da inflação.

“Estes números mostram que a inflação pode ser muito amiga dos devedores e inimiga dos credores”, refere João Duque, presidente e professor catedrático do ISEG, notando ainda que “se os preços continuassem a subir a este ritmo, na hipótese de crescimentos reais fracos, ainda se acabava a ter quase 100% da redução do peso da dívida feito à custa da inflação.”

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Além do efeito individual da inflação, o rácio da dívida face ao PIB é influenciado pelo crescimento do PIB e pelo efeito agregado do PIB e da inflação. No entanto, mesmo considerado que o efeito agregado das duas variáveis tivesse sido gerado unicamente pela inflação, significaria que a inflação explicaria pelo menos 54% da redução do rácio da dívida em 2023, segundo cálculos do ECO.

“Pode-se dizer que, na perspetiva do ministro das Finanças e do peso da dívida no PIB, o ano de 2023 foi o ano ideal“, refere José Cardoso Moreira, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEUP).

Historicamente, a redução da dívida por via da inflação sempre foi uma das formas mais fáceis e rápidas dos governos ‘baixarem’ a sua dívida.

Carlos Santos

Professor no ISEG

De acordo com dados compilados pelo ECO, nunca a inflação teve um peso tão grande na redução do rácio da dívida face ao PIB como em 2023, desde pelo menos 1995. Nos seis anos anteriores a 2023, por exemplo, que ficaram também marcados por uma queda do rácio da dívida face ao PIB de 131,5% em 2016 para 112,4% em 2022, a inflação foi responsável por menos de um terço da baixa do nível de endividamento da República.

Estes números não retiram força ao feito alcançado por Fernando Medina no controlo da despesa e na redução do rácio da dívida nos últimos anos, mas João Duque sublinha que “o Governo é um dos que sofre com esta ‘descoberta’, mostrando que a inflação de que falam mal é muito amiga do ministro das Finanças que até trabalha por ele quando ele está a dormir.”

Poder demolidor da inflação no rácio da dívida

A taxa de inflação tem um impacto significativo na diminuição da proporção da dívida pública face ao PIB porque gera um aumento automático do PIB nominal (o denominador na relação dívida/PIB), que aumenta unicamente em resposta ao incremento da generalidade dos preços.

À medida que a inflação escala, as receitas fiscais do Estado aumentam sem necessidade de o Governo promover qualquer mudança da sua política fiscal. Este fenómeno eleva a riqueza produzida no país (PIB) de forma natural pelo aumento do consumo que segue imediatamente a ascensão dos preços.

A redução do rácio da dívida face ao PIB para baixo do limiar dos 100% conseguida pelo atual Governo em 2023 é o colidir de uma estratégia que decorre desde 2017, em grande medida pela contenção da despesa pública.

Por outro lado, a dívida pública mantém-se praticamente inalterada, dado que a sua estimativa já incorpora as expectativas de inflação delineadas no Orçamento de Estado para esse ano, que é elaborado pelo Governo no término do ano anterior.

E é por isso que, “historicamente, a redução da dívida por via da inflação sempre foi uma das formas mais fáceis e rápidas dos governos ‘baixarem’ a sua dívida”, refere Carlos Santos, professor de Economia do ISEG.

Foi isso que aconteceu em 2022 e voltou a suceder em 2023, com o Governo a inscrever uma inflação, medida pelo Índice Harmonizado de Preços no Consumidor (IHPC), de 1,7% no Orçamento de Estado para 2023, quando esta fechou nos 5,3% em 2023.

Desta forma, como resultado do disparo da inflação em 2023 face às projeções iniciais do ministério das Finanças, observou-se uma subida imediata do denominador (PIB) e uma estabilização do numerador (dívida pública), que fez com que o rácio de endividamento do Estado baixasse consideravelmente.

Pressão sobre as contas públicas

A redução do rácio da dívida face ao PIB para baixo do limiar dos 100% conseguida pelo atual Governo em 2023 é o colidir de uma estratégia que decorre desde 2017, em grande medida pela contenção da despesa pública, como mostram repetidamente as várias execuções orçamentais da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAD).

“Numa situação de inflação seria tentador para um governo mais populista aumentar despesa, pelo que só se consegue ‘beneficiar’ do aumento da inflação com contenção salarial nos salários da função pública”, refere Carlos Santos, sublinhando que foi isso que o Governo conseguiu fazer “com perdas reais para os funcionários públicos com salários acima dos 1.500 euros.” Mas não só.

A contenção da despesa pública é também visível pela pressão sobre os serviços públicos nos últimos anos. É disso exemplo o aumento das listas de espera no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e do crescimento de 30% do número de utentes sem médico de família, segundo contas feitas pelo Conselho das Finanças Públicas, num relatório publicado em meados do ano passado.

O mesmo é visível na Justiça, com a Provedoria da Justiça a denunciar recentemente que os serviços públicos são pouco acessíveis e demorados, e com a execução do investimento público a apresentar recorrentemente níveis abaixo dos valores orçamentados, como voltou a acontecer em 2023, com particular destaque para a Saúde e a Educação, que apenas executaram 43% e 28% do investimento previsto, respetivamente.

“Os investimentos do Estado continuam muito baixos e as despesas de funcionamento que já eram insuficientes antes da crise tornaram-se mais insuficientes”, salienta o economista António Nogueira Leite, que vislumbra uma forte pressão sobre o rácio da dívida nos próximos anos.

Para o ex-Secretário de Estado do Tesouro e Finanças “de duas uma: as pessoas ajustam-se e aceitam menos qualidade dos serviços públicos e continua-se a não investir nas despesas de funcionamento – e com isso gera-se uma maior degradação dos serviços públicos –, ou para os resolver terá de se investir numa altura em que a macroeconomia deixa de ajudar“, dado que a inflação deverá manter-se nos próximos anos em níveis bem abaixo dos registados em 2022 e 2023.

No entanto, António Nogueira Leite não antevê uma subida do rácio da dívida face ao PIB nos próximos anos. Mas sublinha que para isso não acontecer “é preciso que a economia cresça bastante”.

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