Diálogo com Bruxelas é sinónimo de aumento de impostos?
Quando Bruxelas pede mais informação sobre planos orçamentais, o país treme. É que o filme parece repetido e o contribuinte sentiu o final da primeira história no bolso. Vêm aí mais impostos?
Mário Centeno envia os planos orçamentais para Bruxelas. Bruxelas diz que não vê os mesmos números e pede esclarecimentos. Dois dias, dentro do horário de expediente, para os dados chegarem, ok? Mas dos dois lados dizem-nos que está tudo bem e que é tudo normal. Stop! Já vimos este filme? É aquele que acaba com mais um aumento de impostos? Sim, pode muito bem ser.
Rewind. A 26 de janeiro de 2016, Valdis Dombrovskis e Pierre Moscovici enviaram uma carta a pedir mais esclarecimentos sobre o esboço de Orçamento do Estado para este ano (que foi entregue mais tarde do que o habitual, por causa das eleições). Tal como aconteceu esta semana, a carta foi mais dura do que as declarações feitas no dia seguinte, em conferência de imprensa. É só um “pedido de clarificação”, disse o comissário dos Assuntos Económicos, nas duas ocasiões.
Mas vale a pena recordar a missiva de janeiro para descobrir as diferenças face ao que está a acontecer agora. A substância é, genericamente, a mesma: os comissários não encontram detalhe suficiente no esboço orçamental que fundamente o alegado cumprimento das metas.
Na carta enviada esta terça-feira, a forma do discurso é esta:
E ambos os documentos terminam com o tom conciliatório que mandam as regras das boas relações diplomáticas. Este é o fim da carta de janeiro:
E este pertence à correspondência de outubro:
Quer dizer que estamos exatamente na mesma? Não. O tom do documento é bastante diferente. Há todo um caminho que Portugal fez desde então que dá motivos à Comissão para não fazer “pré-julgamentos”, como garantiu esta quarta-feira Pierre Moscovici. Enquanto em janeiro Portugal se destacava por ser o país que falhou a meta do défice de 2015, e tinha acabado de virar politicamente à esquerda, agora Centeno tem o mérito de apresentar contas para 2016 perante as quais a própria Comissão estima que o défice ficará abaixo do limite dos 3% do PIB.
E isso tem impacto no discurso dos comissários, por mais que nos dois momentos tenham sido dadas garantias de que se está só a cumprir as regras. Desde logo, em janeiro, Bruxelas avisou que se os esclarecimentos não viessem a ser convincentes, seria pedida uma correção ao esboço de orçamento. Agora, essa possibilidade não é tão-pouco referida.
Então o Governo não vai ter de encontrar mais medidas?
Calma. Neste filme não dá para saltar episódios. Tal como em janeiro, os procedimentos serão seguidos um por um. Primeiro, importa esclarecer que não é correto afirmar que o plano orçamental já “foi aceite” como fez o ministro das Finanças, na terça-feira.
A Comissão ainda nem emitiu uma opinião formal; está previsto que isso aconteça no final de novembro. Tal como esclareceu Pierre Moscovici, esta é uma fase preliminar do diálogo. O Conselho recomenda Portugal que corrija o défice estrutural em 0,6% do PIB e Centeno compromete-se a cumprir esse pedido. O problema é que com as informações que enviou, os peritos da Comissão não encontram medidas que fundamentem que o esforço vá mesmo ser da dimensão prometida.
A divergência, explicada por falta de especificação das medidas e por um cenário macroeconómico que a Comissão considera otimista, é, pelo menos, de 900 milhões de euros. É isso que quer dizer correr “o risco de desvio significativo”. Um país desvia-se de forma significativa do objetivo traçado quando a diferença entre a meta e as estimativas da Comissão é, pelo menos, de 0,5% do PIB — o equivalente aos tais 900 milhões de euros.
Traduzindo, quer dizer que o Governo promete ajustar 0,6%, mas que a Comissão, com os dados que o Executivo lhe enviou, não encontra um ajustamento que chegue, sequer, aos 0,1%.
Esse episódio está repetido. Onde é que eu já vi isto?
É natural que nesta parte do filme regressem sensações de déjà vu. A Unidade Técnica de Apoio Orçamental fez uma avaliação muito parecida a esta, numa nota preliminar sobre o OE2017, enviada aos deputados na segunda-feira.
Os peritos que prestam apoio ao Parlamento em matérias de finanças públicas explicam que para corrigir o défice orçamental em 0,6% do PIB, o ministro das Finanças precisa de aplicar um esforço de consolidação muito superior, em torno de 1% do PIB. Isto porque, antes de corrigir o saldo estrutural, é preciso compensar a degradação natural das contas, que acontece apenas pela dinâmica da própria economia — por exemplo, gasta-se sempre mais em Saúde porque a população está a envelhecer.
Ora, as medidas identificadas por Centeno valem 0,34% do PIB, diz a UTAO, mal chegam para estabilizar o saldo estrutural. Faltam, contabilizam os peritos, 1.300 milhões de euros.
Voltemos ao que importa: qual é a ideia de Centeno?
Há dois caminhos possíveis. O mais agradável, é aquele que Centeno convence os peritos de Bruxelas com os dados adicionais. Não será preciso que a Comissão fique a acreditar no ajustamento de 0,6% — basta que a diferença seja menor do que 0,5%, o valor definido no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) como correspondendo ao “desvio significativo”, para que esta fase seja ultrapassada.
A julgar pela carta, em que os comissários assumem que encontram “uma ligeira melhoria” no défice orçamental, deverá ser preciso convencer os peritos de impactos na ordem de uma ou duas décimas do PIB, números redondos, o equivalente a um valor entre os 200 e os 400 milhões de euros.
Neste cenário, é possível que a Comissão aprove o esboço orçamental com reservas ou recomendações, pedindo provas suplementares mais à frente.
Mas há um caminho mais tortuoso: aquele que Centeno escolheu em janeiro. Não havia no Orçamento, efetivamente, medidas que justificassem o ajustamento estrutural prometido. E, por isso, não foi possível convencer os peritos europeus. Depois de um diálogo mais ou menos aceso, o ministro português acrescentou medidas de austeridade aos planos. Foi assim que se agravou o aumento de impostos sobre a gasolina e o gasóleo, lembra-se?
Agora, as palavras da Comissão são mais brandas, mas o Executivo português corre o mesmo risco. Tal como em janeiro, Centeno recusou ontem essa possibilidade — “O diálogo que já temos mantido com a Comissão Europeia não indicia que isso vá acontecer”, disse — e durante a tarde, na sua primeira audição parlamentar sobre o OE2017, chamou míope à Europa.
A Europa é míope. Como assim?
“A Europa está refém de si própria. A miopia de uns poucos adia, num certo sentido, o futuro de uns milhões”, disse o ministro das Finanças perante os deputados da comissão de Orçamento e Finanças. Mário Centeno referia-se à teoria da “miopia metodológica”, que vem explicada no OE2017, e contra a qual o Governo se tem “batido em Bruxelas”.
No relatório do Orçamento do Estado, o Governo argumenta que a atual forma de estimar os ajustamentos orçamentais estruturais que está prevista no Programa de Estabilidade e Crescimento é “míope”.
"A atual metodologia é desincentivadora da implementação de reformas estruturais pela forma como o seu impacto é transmitido ao produto potencial e pela necessidade que é imposta para a compensação do seu financiamento.”
Pega numa reforma estrutural hipotética, por exemplo, na área da Educação, que custe 0,5% do PIB no primeiro ano de implementação da medida, 0,3% no segundo e 0,08% nos seguintes. Depois, calcula os efeitos no saldo estrutural da implementação dessa medida (que, por hipótese, permitiria reduzir em dois pontos percentuais a percentagem de trabalhadores com baixas qualificações) consoante três cenários:
- Calcula apenas os resultados de acordo com as regras do PEC;
- Calcula os resultados de acordo com as regras do PEC, mas assumindo que o Governo em causa aplicou medidas compensatórias para evitar a degradação do saldo estrutural;
- Calcula o resultado segundo um modelo desenvolvido pela Comissão Europeia, mas calibrado para a economia portuguesa.
Conclusão: só no terceiro modelo é que a hipotética reforma estrutural resultaria num esforço positivo, com impactos favoráveis no PIB potencial. É por isso que o Governo conclui que “as atuais regras do PEC induzem uma miopia de curto prazo na avaliação da sustentabilidade das finanças públicas”. Mais, diz que a atual metodologia “é desincentivadora da implementação de reformas estruturais pela forma como o seu impacto é transmitido ao produto potencial e pela necessidade que é imposta para a compensação do seu financiamento”.
Quer dizer que o ministro (só) quer mudar as regras?
Não há como dizer se é só isso que o ministro quer, mas é possível dizer que o Governo quer, pelo menos, isso. “Hoje, Portugal faz mais parte da Europa do que fazia há um ano. Hoje Portugal conta”, afirmou Ricardo Mourinho Félix, secretário de Estado do Tesouro, na quarta-feira, numa conferência de imprensa sobre Orçamento do Estado. “O Governo ganhou uma capacidade de discussão dos temas do crescimento, do emprego, da reforma do Estado, das reformas estruturais e do sistema bancário que permite a Portugal ser hoje um entre iguais”, reforçou.
As divergências com Bruxelas têm que ver com “a metodologia de cálculo do défice, de PIB potencial e de saldo estrutural”, assumiu Mário Centeno, depois de ser conhecida a carta.
São questões que têm que ver com “efeitos de segunda ordem”, explicou o secretário de Estado do Orçamento, João Leão, em declarações ao ECO, referindo-se às diferenças de avaliação face à UTAO, ainda antes de ter sido revelada a carta dos comissários. Os técnicos estarão a sobreavaliar o efeito do ciclo económico que tem de ser descontado ao saldo orçamental, de modo a obter apenas a parte do ajustamento que é estrutural, defendeu. Hummm… Onde é que eu já li isto?
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